Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente de Portugal |
Os livros de Alberto Manguel são do tipo que costumam causar grande prazer ao leitor (assim deveriam ser todos os livros). Todos, sem exceção, são leves, agradáveis e carregados de uma variedade de conhecimento capaz de elevar o espírito daqueles que se dedicam a, pelo menos, folheá-los. Da obra do autor argentino, muito me agradam Uma História da leitura (1997) e Lendo imagens - Uma história de amor e ódio (2001). Lendo imagens é de uma beleza gritante, no que diz respeito às análises que são feitas a partir das obras de artistas como Tina Modotti, Aleijadinho, Picasso e Caravaggio, por exemplo. O trabalho consiste, basicamente, em analisar a obra de determinado/determinada artista, explorando certas temáticas. Por exemplo: "Marianna Gartner: a imagem como pesadelo" ou "Joan Mitchel: a imagem como ausência". E assim, sempre fazendo essa relação, o autor disponibiliza onze análises.
Costumeiramente, recorro a esse livro em busca de uma ou outra informação. Ás vezes, no entanto, o busco apenas como constatação de possuí-lo, e me vejo como a personagem de "Felicidade Clandestina", conto de Clarice Lispector. E, parafraseando a autora, finjo que não o tenho, só para ter o susto de o ter. Horas, dias, semanas depois abro-o, leio algumas páginas maravilhosas, fecho-o de novo, ando pela casa (geralmente de madrugada), adio a centésima leitura, mas sem ir comer pão com manteiga, e minto pra mim mesmo, fingindo que não sei onde o guardei.
A imagem é uma forma de compreensão, de nós mesmos e dos outros.Todo retrato, nos diz Manguel, é, em certo sentido, um autorretrato que reflete o espectador. Como "o olho não se contenta em ver", atribuímos a um retrato as nossas percepções e as nossas experiências. Na alquimia do ato criativo, continua ele, todo retrato é um espelho. E eis que lembro a primeira vez que vi uma Ferrari nas ruas da minha cidade. Na ocasião, fui tomado por um misto de admiração e indignação. Aquilo era para mim uma esfinge. E pensei que quem pode comprar uma Ferrari pode desfilar com ela por onde bem quiser, inclusive pelas ruas esburacadas e fedidas a merda da minha provinciana cidade. E assim, nunca esqueci daquela imagem na vida das minhas retinas tão jovens, mas já tão fatigadas. Eu, que naquela ocasião era apenas um rapazinho latino-americano, suportando o peso de tudo aquilo que é negado a um rapaz latino-americano sem parentes importantes. Assim, não compreendia que aquela Ferrari era a mais pura tradução do fosso que separa ricos e pobres em um país que se orgulha de ser excludente, ao mesmo tempo em que, esquizofrenicamente, fala em meritocracia. Entendi, então, que imagens também podem ser, ao mesmo, aterradoras e conscientizadoras.
Há, em todas as cidades
do Brasil, lugares que são delimitados por linhas (nem sempre) imaginárias, que
dizem aonde você, pobre, pode ou não pode ir, muito menos permanecer, sem que você possa ser
considerado estar em “atitude suspeita”. Isso, obviamente, não é privilégio do
Brasil, uma vez que até Bob Dylan já foi preso nos EUA por estar, acredite
você, em atitude suspeita. Essa imagem é maravilhosa! Mas falamos daqui, abaixo da linha do Equador, onde
quase tudo em relação aos menos favorecidos é sempre tão indecente e ofensivo
quanto uma Ferrari cruzando ruas esburacadas e fedorentas.
Crescemos vendo na
televisão como são belas as casas dos artistas e políticos brasileiros. Tem-se
a impressão de que são seres humanos escolhidos e abençoados por um
poder divino, cabendo a nós apenas admirar e agradecer por existirem. Dessa forma, seguimos acreditando que o fosso social que separa ricos e pobres é algo
perfeitamente natural, e assim o é porque Deus o quis. Quantas vezes vimos
nossos líderes políticos na fila de um supermercado ou andando de ônibus, como
uma pessoa comum? Com exceção de um ou outro perdido, nunca os vemos. E por qual
razão? A resposta é simples: para nossos líderes, tal distanciamento é
necessário como imposição de respeito. Mas na verdade, a coisa não é bem assim. O
que ocorre é que esses homens e mulheres políticos não se identificam como seres humanos comuns (houve por aqui um ditador que dizia preferir o cheiro dos cavalos ao do povo);
acreditam que estão acima da maioria da população, ungidos por poderes
superiores que os permitem, da sua torre de marfim, observar a massa amorfa de
cidadãos de segunda classe. A reprodução dessa estupidez aliada à ignorância do
povo (se tiver uma boa pitada de religião, perfeito) é a receita para que tudo
continue como sempre esteve. E se pudéssemos vislumbrar uma imagem desse tipo de situação, seria a da imagem enquanto submissão, quando deveria ser, na realidade, a imagem enquanto revolta e subversão, como bem nos ensina Minneapolis ao cobrar justiça para George Floyd.
Tais considerações me
vieram à mente, quando vi uma imagem que nos diz muito sobre o que somos enquanto sociedade e
aquilo que podemos aprender com seres humanos, individualmente. Refiro-me,
especificamente, à imagem do Presidente de Portugal, o professor Marcelo Rebelo
de Souza, na fila de um supermercado, vestindo seu calção azul-celeste, usando
máscara e respeitando o distanciamento exigido pelos protocolos da quarentena estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde. A imagem viralizou e surpreendeu o mundo inteiro, acostumado as inutilidades
cotidianas da vida. Para Portugal, no entanto, foi algo corriqueiro. Diante da divulgação da referida imagem, soubemos que o professor, Presidente de Portugal, não mora no palácio
presidencial, mas na casa na qual sempre viveu. Não se tem notícia de que o Presidente, professor Marcelo Rebelo de Sousa tenha ou dirija uma Ferrari. Uma
das poucas certezas acerca do Presidente de Portugal é que ele, faça chuva ou
faça sol, toma seu banho de mar todos os dias às 8h da manhã. Sem mais.
Portugal, como
vemos, elegeu um professor como presidente, não um militar paraquedista. E isso faz muita diferença, pois toda imagem é um espelho.
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