domingo, 30 de abril de 2017

BELCHIOR: O POETA COM O SOL NO QUINTAL

Certa feita, ao assistir uma matéria com Belchior, ouvi-o dizer: "a vida de ninguém me interessa" e "não quero a fama, quero a glória". Lembro disso agora, quando leio na imprensa que o autor de Divina comédia humana está desaparecido, sendo condenado a revelia e com ordens de prisão prontas para serem executadas. Um ou outro veículo insiste em dizer, mesmo nas entrelinhas, que o sumiço do artista, o abandono de seus bens e o não pagamento das pensões que deve, bem como as estadias nos inúmeros hotéis pelos quais tem passado tem a ver com a influência da sua atual companheira.

Se Belchior já está com problemas, minar sua vida pessoal é por demais desonesto e desrespeitoso com um dos maiores nomes da música desse país, mas, antes de tudo, um cidadão que como qualquer outro, mesmo sendo homem público, merece ter sua privacidade resguardada. Mas se assim não fosse, como vender revistas e jornais? Dizem as más línguas, que notícias boas não vendem. Como saber, se não tentamos?

E não venham me dizer que Belchior achou sua Yoko Ono. Até porque acho que Belchior está mais para Bob Dylan do que para John Lennon. E, convenhamos, esse papo de teoria da conspiração tendo sempre uma mulher como estopim da derrocada de um homem é pra lá de atrasado. É querer supor que o outro não tem vontade própria, que é um sujeito assujeitado, alheio a tudo aquilo que o circunda. Isso não procede, e Bakhtin já nos alertava sobre isso. Assujeitar-se em nada condiz com o autor de Alucinação, haja vista a verve questionadora e libertária de suas canções.

No âmbito de toda essa história, há muita coisa ainda não dita, assim como há muita coisa mal dita. Há o que se diz, o que não se diz, o que não se sabe e o que não se quer saber. E na atual mundialização da fofoca, maquiada para parecer informação, poucos são aqueles que conseguem escapar à draga desse poderosíssimo quarto poder. É necessário, contudo, não querer jogar toda a responsabilidade na imprensa, pois corremos o risco de cairmos na leviandade de defender a volta da censura. E se já passamos por isso, e bem sabemos no que deu, não podemos nem de longe vislumbrar tal possibilidade. A liberdade de expressão deve ser defendida e preservada a todo custo. E como bem disse Voltaire: "posso não concordar com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-la". Os abusos e os excessos, no entanto, devem ser penalizados na forma da lei. E se a justiça tarda e falha, façamos com que ela funcione, pois, como bem disse Rui Barbosa: "justiça que tarda não é justiça".

E se a todo grande homem fosse perguntado se preferia uma grande obra ou uma história de vida, não tenho dúvida que a opção seria pela história de vida, não importando a vida. Detentor de uma grande obra, Belchior está vivenciando sua história de vida de uma maneira que talvez muitos jamais imaginaram que ele faria e, subestimá-lo, julgá-lo e condená-lo não me parece a melhor forma para compreendê-lo, ao contrário. Se o momento pelo qual passa o artista está atravancado por obstáculos, eles passarão e, não mais que de repente sua vida se iluminará como um sol no quintal.


A presente crônica não tem nenhum objetivo maior, a não ser refletir, modesta e limitadamente, a partir do "caso Belchior", sobre os enigmas da vida, as conjecturas do poder da mídia e as ações de liberdade que temos de implementar todos os dias. Sabemos, é claro, que é muita pretensão para pouco texto, mas a intenção é apenas apontar caminhos para questionamentos mais amplos acerca do outro, não da maneira tacanha como se costumam reduzir vidas na mídia da nossa "adorável" sociedade do espetáculo, mas de maneira mais séria, mais adulta e mais responsável. 

...

A crônica Belchior - o poeta com o sol no quintal estava agendada para publicação em livro ainda em 2017. Com a notícia da morte do poeta, nós a publicamos aqui, como forma de homenagear esse grande mestre da canção universal.

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