Certa feita, ao assistir
uma matéria com Belchior, ouvi-o dizer: "a vida de ninguém me
interessa" e "não quero a fama, quero a glória". Lembro disso
agora, quando leio na imprensa que o autor de Divina comédia humana está desaparecido, sendo condenado a revelia
e com ordens de prisão prontas para serem executadas. Um ou outro veículo
insiste em dizer, mesmo nas entrelinhas, que o sumiço do artista, o abandono de
seus bens e o não pagamento das pensões que deve, bem como as estadias nos
inúmeros hotéis pelos quais tem passado tem a ver com a influência da sua atual
companheira.
Se Belchior já está com
problemas, minar sua vida pessoal é por demais desonesto e desrespeitoso com um
dos maiores nomes da música desse país, mas, antes de tudo, um cidadão que como
qualquer outro, mesmo sendo homem público, merece ter sua privacidade
resguardada. Mas se assim não fosse, como vender revistas e jornais? Dizem as
más línguas, que notícias boas não vendem. Como saber, se não tentamos?
E não venham me dizer que
Belchior achou sua Yoko Ono. Até porque acho que Belchior está mais para Bob
Dylan do que para John Lennon. E, convenhamos, esse papo de teoria da conspiração
tendo sempre uma mulher como estopim da derrocada de um homem é pra lá de
atrasado. É querer supor que o outro não tem vontade própria, que é um sujeito
assujeitado, alheio a tudo aquilo que o circunda. Isso não procede, e Bakhtin
já nos alertava sobre isso. Assujeitar-se em nada condiz com o autor de Alucinação, haja vista a verve
questionadora e libertária de suas canções.
No âmbito de toda essa
história, há muita coisa ainda não dita, assim como há muita coisa mal dita. Há
o que se diz, o que não se diz, o que não se sabe e o que não se quer saber. E
na atual mundialização da fofoca, maquiada para parecer informação, poucos são
aqueles que conseguem escapar à draga desse poderosíssimo quarto poder. É
necessário, contudo, não querer jogar toda a responsabilidade na imprensa, pois
corremos o risco de cairmos na leviandade de defender a volta da censura. E se
já passamos por isso, e bem sabemos no que deu, não podemos nem de longe
vislumbrar tal possibilidade. A liberdade de expressão deve ser defendida e
preservada a todo custo. E como bem disse Voltaire: "posso não concordar
com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte o seu direito de
dizê-la". Os abusos e os excessos, no entanto, devem ser penalizados na
forma da lei. E se a justiça tarda e falha, façamos com que ela funcione, pois,
como bem disse Rui Barbosa: "justiça que tarda não é justiça".
E se a todo grande homem
fosse perguntado se preferia uma grande obra ou uma história de vida, não tenho
dúvida que a opção seria pela história de vida, não importando a vida. Detentor
de uma grande obra, Belchior está vivenciando sua história de vida de uma
maneira que talvez muitos jamais imaginaram que ele faria e, subestimá-lo,
julgá-lo e condená-lo não me parece a melhor forma para compreendê-lo, ao
contrário. Se o momento pelo qual passa o artista está atravancado por
obstáculos, eles passarão e, não mais que de repente sua vida se iluminará como
um sol no quintal.
A presente crônica não
tem nenhum objetivo maior, a não ser refletir, modesta e limitadamente, a
partir do "caso Belchior", sobre os enigmas da vida, as conjecturas
do poder da mídia e as ações de liberdade que temos de implementar todos os
dias. Sabemos, é claro, que é muita pretensão para pouco texto, mas a intenção
é apenas apontar caminhos para questionamentos mais amplos acerca do outro, não
da maneira tacanha como se costumam reduzir vidas na mídia da nossa
"adorável" sociedade do espetáculo, mas de maneira mais séria, mais
adulta e mais responsável.
...
A crônica Belchior - o poeta com o sol no quintal estava agendada para publicação em livro ainda em 2017. Com a notícia da morte do poeta, nós a publicamos aqui, como forma de homenagear esse grande mestre da canção universal.
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