sábado, 1 de abril de 2017

A IGREJA E O SOBRADO

A saudade é um sentimento nostálgico ligado à memória, e, atire a primeira pedra quem nunca sentiu saudade de alguém ou de alguma coisa. Costumamos sentir saudade daquela comida que a avó fazia, dos passeios pela praia com aquele grande amor do qual pouco restou, do primeiro corpo, do primeiro gole, do primeiro amor.
A saudade é como a erva daninha que sempre acreditamos ter extirpado. Mas que nada! De repente, lá está ela a atazanar-nos o juízo, feito aquele maldito morcego do poema do Augusto dos Anjos. Há saudade boa de ter e há saudade que não queríamos nunca sentir.
Saudade, diz uma velha canção de Hermínio Gimenez, é palavra triste quando se perde um grande amor. Mas saudade, quando posta no plural, também pode ser utilizada como título de valsinhas, tal qual bem o fez Antenógenes Honório Silva, em Saudades de Uberaba e Saudades de Ouro Preto, o que nem por isso elimina a carga de nostalgia e tristeza que carrega.
E é assim, envolto em especial clima de nostalgia, que o poeta Manuel Bandeira inicia a crônica  “Saudades de Quixeramobim”, afirmando que, se fosse tão bom para a música quanto Antenógenes Silva, esse título seria dado a uma valsinha, e que comporia ainda “Saudades de Campanha” e Saudades de Teresópolis”. Não sei bem o motivo que levaria Bandeira a compor uma valsinha para Campanha e outra para Teresópolis, mas sei o que o levou a escrever uma crônica denominada “Saudades de Quixeramobim”, que - por pouco - não virou valsinha.
Lá em seu Itinerário de Pasárgada, Bandeira diz: "Quando caí doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose era ainda o "mal que não perdoa". Mas fui vivendo, morre-não-morre". Mesmo tendo o médico dito que poderia ainda viver muito, o poeta continuou esperando a morte, vivendo sempre como que provisoriamente, como ele mesmo chegou a afirmar.
As pessoas que tinham tuberculose eram aconselhadas a viver em lugares de clima agradável, próximos a florestas, rios e calmarias. E é assim que Manuel Bandeira vai parar na cidade de Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará. Infelizmente, quando chega o poeta, Antonio Conselheiro - há tempos - já partira, enquanto Fausto Nilo nem sabia ainda se um dia chegaria. Sobre sua estadia em Quixeramobim, diz: "creio que as saudades de Quixeramobim são as que mais me doem. Como me doem as de Paris. Porque a verdade é que não estive em Paris: estive durante três dias num quarto de hotel na Rue Balzac. Do mesmo modo, não estive em Quixeramobim: estive durante uns meses num sobradão da praça principal da cidade, em frente à velha matriz".
A crônica de Bandeira é do dia vinte e nove de agosto de mil novecentos e cinquenta e seis, e sua leitura despertou em um grande amigo meu a vontade de produzir algo que eternizasse a passagem do poeta por aquelas bandas. Após compartilhar comigo suas intenções, parece-me que ele decidiu arquivar o projeto. E acabei ficando com a impressão de sermos o que foram para Bandeira a igreja e o sobrado de Quixeramobim: "A igreja e o sobrado pareciam personagens de um apólogo dialogal. Dois fantasmas".
Como era costume nas cidades do interior, o sino repicava todas as vezes que alguém morria. Em Quixeramobim não era diferente, o que levava Bandeira a se perguntar: "Sino de Quixeramobim, baterás por mim?". Acredito que, quando da morte de Bandeira, em 1968, o sino grande da matriz não tenha batido em sua memória. E hoje, quantos quixeramobienses sabem que Manuel Bandeira morou no velho sobradão da praça da matriz "encantoado na sala da frente, que ia de um oitão a outro, com várias sacadas para o largo, mobiliada (Bandeira detestava a palavra "mobilada") com uma cama-de-vento, uma cadeira e um lavatoriozinho de ferro?". Quantos?
Tudo que Manuel Bandeira, o São João Batista do Modernismo, viveu em Quixeramobim virou saudade. O poeta não conseguiu, ao melhor estilo de Antenógenes Silva, transformar sua passagem por Quixeramobim em uma valsinha, mas, com seu talento, deu à Literatura Brasileira uma de suas mais belas crônicas. Quanto ao meu amigo Narcélio, sendo igreja ou sobrado, deverá retomar seu antigo projeto e, se não executar o que antes pretendera, quem sabe não compõe ao menos uma valsinha daquelas que encheriam Bandeira de orgulho e Antenógenes Silva de inveja.

CARVALHO, Carlos. A igreja e o sobrado. In: Prêmio Sesc de Crônicas  Rubem Braga: coletânea de crônicas. Brasília: SESC DF, 2016.

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