A saudade é um sentimento
nostálgico ligado à memória, e, atire a primeira pedra quem nunca sentiu
saudade de alguém ou de alguma coisa. Costumamos sentir saudade daquela comida
que a avó fazia, dos passeios pela praia com aquele grande amor do qual pouco
restou, do primeiro corpo, do primeiro gole, do primeiro amor.
A saudade é como a erva daninha que
sempre acreditamos ter extirpado. Mas que nada! De repente, lá está ela a
atazanar-nos o juízo, feito aquele maldito morcego do poema do Augusto dos
Anjos. Há saudade boa de ter e há saudade que não queríamos nunca sentir.
Saudade, diz uma velha canção de
Hermínio Gimenez, é palavra triste quando se perde um grande amor. Mas saudade,
quando posta no plural, também pode ser utilizada como título de
valsinhas, tal qual bem o fez Antenógenes Honório Silva, em Saudades de Uberaba e Saudades
de Ouro Preto, o que nem por isso elimina a carga de nostalgia e tristeza
que carrega.
E é assim, envolto em especial
clima de nostalgia, que o poeta Manuel Bandeira inicia a crônica “Saudades de Quixeramobim”, afirmando que, se fosse tão bom
para a música quanto Antenógenes Silva, esse título seria dado a uma valsinha,
e que comporia ainda “Saudades de Campanha” e “Saudades de Teresópolis”. Não sei bem o motivo que
levaria Bandeira a compor uma valsinha para Campanha e outra para Teresópolis,
mas sei o que o levou a escrever uma crônica denominada “Saudades de Quixeramobim”, que - por pouco - não virou
valsinha.
Lá em seu Itinerário de Pasárgada, Bandeira diz: "Quando caí doente
em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose era ainda
o "mal que não perdoa". Mas fui vivendo, morre-não-morre". Mesmo
tendo o médico dito que poderia ainda viver muito, o poeta continuou esperando
a morte, vivendo sempre como que provisoriamente, como ele mesmo chegou a
afirmar.
As pessoas que tinham tuberculose
eram aconselhadas a viver em lugares de clima agradável, próximos a florestas,
rios e calmarias. E é assim que Manuel Bandeira vai parar na cidade de
Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará. Infelizmente, quando chega o poeta,
Antonio Conselheiro - há tempos - já partira, enquanto Fausto Nilo nem sabia
ainda se um dia chegaria. Sobre sua estadia em Quixeramobim, diz: "creio
que as saudades de Quixeramobim são as que mais me doem. Como me doem as de
Paris. Porque a verdade é que não estive em Paris: estive durante três dias num
quarto de hotel na Rue Balzac. Do mesmo modo, não estive em Quixeramobim:
estive durante uns meses num sobradão da praça principal da cidade, em frente à
velha matriz".
A crônica de Bandeira é do dia
vinte e nove de agosto de mil novecentos e cinquenta e seis, e sua leitura
despertou em um grande amigo meu a vontade de produzir algo que eternizasse a
passagem do poeta por aquelas bandas. Após compartilhar comigo suas intenções,
parece-me que ele decidiu arquivar o projeto. E acabei ficando com a impressão
de sermos o que foram para Bandeira a igreja e o sobrado de Quixeramobim:
"A igreja e o sobrado pareciam personagens de um apólogo dialogal. Dois
fantasmas".
Como era costume nas cidades do interior,
o sino repicava todas as vezes que alguém morria. Em Quixeramobim não era
diferente, o que levava Bandeira a se perguntar: "Sino de
Quixeramobim, baterás por mim?". Acredito que, quando da morte de
Bandeira, em 1968, o sino grande da matriz não tenha batido em sua
memória. E hoje, quantos quixeramobienses sabem que Manuel Bandeira morou no velho
sobradão da praça da matriz "encantoado na sala da frente, que ia de um
oitão a outro, com várias sacadas para o largo, mobiliada (Bandeira detestava a
palavra "mobilada") com uma cama-de-vento, uma cadeira e um
lavatoriozinho de ferro?". Quantos?
Tudo que Manuel Bandeira, o São
João Batista do Modernismo, viveu em Quixeramobim virou saudade. O poeta não
conseguiu, ao melhor estilo de Antenógenes Silva, transformar sua passagem por
Quixeramobim em uma valsinha, mas, com seu talento, deu à Literatura
Brasileira uma de suas mais belas crônicas. Quanto ao meu amigo Narcélio, sendo
igreja ou sobrado, deverá retomar seu antigo projeto e, se não executar o
que antes pretendera, quem sabe não compõe ao menos uma valsinha
daquelas que encheriam Bandeira de orgulho e Antenógenes Silva de inveja.
CARVALHO, Carlos. A
igreja e o sobrado. In: Prêmio Sesc de Crônicas Rubem Braga: coletânea de crônicas. Brasília:
SESC DF, 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário