domingo, 30 de abril de 2017

BELCHIOR: O POETA COM O SOL NO QUINTAL

Certa feita, ao assistir uma matéria com Belchior, ouvi-o dizer: "a vida de ninguém me interessa" e "não quero a fama, quero a glória". Lembro disso agora, quando leio na imprensa que o autor de Divina comédia humana está desaparecido, sendo condenado a revelia e com ordens de prisão prontas para serem executadas. Um ou outro veículo insiste em dizer, mesmo nas entrelinhas, que o sumiço do artista, o abandono de seus bens e o não pagamento das pensões que deve, bem como as estadias nos inúmeros hotéis pelos quais tem passado tem a ver com a influência da sua atual companheira.

Se Belchior já está com problemas, minar sua vida pessoal é por demais desonesto e desrespeitoso com um dos maiores nomes da música desse país, mas, antes de tudo, um cidadão que como qualquer outro, mesmo sendo homem público, merece ter sua privacidade resguardada. Mas se assim não fosse, como vender revistas e jornais? Dizem as más línguas, que notícias boas não vendem. Como saber, se não tentamos?

E não venham me dizer que Belchior achou sua Yoko Ono. Até porque acho que Belchior está mais para Bob Dylan do que para John Lennon. E, convenhamos, esse papo de teoria da conspiração tendo sempre uma mulher como estopim da derrocada de um homem é pra lá de atrasado. É querer supor que o outro não tem vontade própria, que é um sujeito assujeitado, alheio a tudo aquilo que o circunda. Isso não procede, e Bakhtin já nos alertava sobre isso. Assujeitar-se em nada condiz com o autor de Alucinação, haja vista a verve questionadora e libertária de suas canções.

No âmbito de toda essa história, há muita coisa ainda não dita, assim como há muita coisa mal dita. Há o que se diz, o que não se diz, o que não se sabe e o que não se quer saber. E na atual mundialização da fofoca, maquiada para parecer informação, poucos são aqueles que conseguem escapar à draga desse poderosíssimo quarto poder. É necessário, contudo, não querer jogar toda a responsabilidade na imprensa, pois corremos o risco de cairmos na leviandade de defender a volta da censura. E se já passamos por isso, e bem sabemos no que deu, não podemos nem de longe vislumbrar tal possibilidade. A liberdade de expressão deve ser defendida e preservada a todo custo. E como bem disse Voltaire: "posso não concordar com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-la". Os abusos e os excessos, no entanto, devem ser penalizados na forma da lei. E se a justiça tarda e falha, façamos com que ela funcione, pois, como bem disse Rui Barbosa: "justiça que tarda não é justiça".

E se a todo grande homem fosse perguntado se preferia uma grande obra ou uma história de vida, não tenho dúvida que a opção seria pela história de vida, não importando a vida. Detentor de uma grande obra, Belchior está vivenciando sua história de vida de uma maneira que talvez muitos jamais imaginaram que ele faria e, subestimá-lo, julgá-lo e condená-lo não me parece a melhor forma para compreendê-lo, ao contrário. Se o momento pelo qual passa o artista está atravancado por obstáculos, eles passarão e, não mais que de repente sua vida se iluminará como um sol no quintal.


A presente crônica não tem nenhum objetivo maior, a não ser refletir, modesta e limitadamente, a partir do "caso Belchior", sobre os enigmas da vida, as conjecturas do poder da mídia e as ações de liberdade que temos de implementar todos os dias. Sabemos, é claro, que é muita pretensão para pouco texto, mas a intenção é apenas apontar caminhos para questionamentos mais amplos acerca do outro, não da maneira tacanha como se costumam reduzir vidas na mídia da nossa "adorável" sociedade do espetáculo, mas de maneira mais séria, mais adulta e mais responsável. 

...

A crônica Belchior - o poeta com o sol no quintal estava agendada para publicação em livro ainda em 2017. Com a notícia da morte do poeta, nós a publicamos aqui, como forma de homenagear esse grande mestre da canção universal.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

UMA BIOGRAFIA DE ELIZABETH BISHOP

Elizabeth Bishop (1911 - 1979) é considerada uma das maiores poetisas do século XX, embora tenha escrito pouco mais de uma centena de poemas. A qualidade da sua obra, no entanto, a coloca como uma das principais poetas do seu tempo e, certamente, a situa entre os "monstros" da literatura mundial. Para os pesquisadores da obra da autora, amantes da poesia e, especificamente do trabalho de Bishop, acaba de ser publicado uma relevante biografia, de autoria da vencedora do Pulitzer, Megan Marshall. Ainda sem tradução para o português brasileiro, o referido trabalho foi publicado pela Houghton Miffin Harcourt, de Nova York, em 2017. Não é preciso dizer, que se trata de uma leitura simplesmente indispensável. 


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sábado, 15 de abril de 2017

OS ROLLING STONES SOB A LUA DE HAVANA


Quem viu a turnê Olé, dos Rolling Stones, pode, muito provavelmente, ter visto a última; pelo menos com o aparato gigantesco característico das apresentações da antológica banda. É que suas majestades satânicas estão envelhecendo. São todos senhores que já passaram dos setenta, e já fizeram e provaram de quase tudo que uma carreira de cinquenta anos de estrada pode proporcionar.

O coroamento da turnê Olé aconteceu com o show que a banda apresentou no dia 25 de março, de 2016, na cidade de Havana, Cuba. Naturalmente histórico, o concerto apresentado em Cuba foi batizado de Havana Moon, e se deu no momento em que Cuba e Estados Unidos restabeleceram relações diplomáticas, com direito a visita do presidente Barack Obama à Ilha. A presença de Keith, Jagger, Watts e Wood em Havana é memorável, uma vez que, por mais de cinquenta anos o Rock, considerado música imperialista, havia sido proibido na “ilha de Fidel”. Isso, no entanto, não impediu que, “subversivamente”, o povo cubano ouvisse bandas como Beatles e Rolling Stones. Uma comprovação disso foi a multidão que lotou o Estádio Cidade Desportiva, para entoar as canções icônicas da banda britânica. Na platéia, jovens e velhos, amantes do bom Rock ’n’ Roll, em êxtase, não perdiam sequer um verso ou um acorde emanados do palco.  


Num piscar de olhos, os Rolling Stones estão no palco. Os acordes de Keith Richards anunciam “Jumpin’ Jack Flash”. Dalí pra frente será só magia. Os Rolling Stones estão em Cuba! No decorrer do show, Mick Jagger, falando em espanhol, disse algo como: “Nós sabemos que, por muitos e muitos anos, foi muito difícil escutar nossa música em Cuba, mas agora nós estamos aqui nessa terra maravilhosa, e eu acho que, finalmente, os tempos estão mudando. É verdade, não?”. À pergunta, o público respondeu positivamente, em uníssono.

Como são todos os shows dos Rolling Stones, o Havana Moon foi mais um grande momento de mágica, entusiasmo e satisfação. O espetáculo à parte foi dado, obviamente, pela beleza do povo cubano (fala-se em 1,2 milhão pessoas presentes) em conexão com as imagens, os sons e os movimentos da lendária banda.

Quem não pôde estar em uma das quatro apresentações da turnê Olé, no Brasil (eu vi em São Paulo, no Morumbi), nem pôde vê-los em Cuba; já está disponível para venda o DVD/Blue Ray com o registro da apresentação histórica. O filme-concerto também foi exibido nos cinemas do Brasil no mês de outubro de 2016, bem como em vários outros países. O documentário traz treze canções: Jumpin’ Jack Flash, It’s only Rock’n’Roll (but I like it), Out of control, Angie, Paint it black, Honky tonk women, You got the silver, Midnight rambler, Gimme shelter, Sympathy for the devil, Brown sugar, You can’t always get what you want e, é claro, (I can’t get no) Satisfaction. Como bonus, tem-se: Tumbling dice, All down the line, Before they make me run, Miss You e Start me up.


De um show para o outro, os Rolling Stones mudam muito pouco seu repertório. Isso só é possível quando se tem um repertório todo composto de clássicos. Entre tantos, um dos momentos altos do show é quando da canção “Gimme shelter” que, apesar da competentíssima participação de Sasha Allen, nos faz sentir saudades da presença não menos majestosa de Lisa Fisher. Mas, como diz aquela velha canção: “Nem sempre se pode ter tudo aquilo que se deseja”. O DVD/Blue Ray da turnê acaba de chegar ao mercado.

Concluída a turnê Olé, os rapazes voltaram ao estúdio e lançaram o trabalho Blue & Lonesome (2016). Trata-se de um trabalho que remete às bases da banda, ou seja, o blues que, de uma forma ou outra, sempre esteve presente nas produções do grupo. O disco contém doze canções. A canção que dá nome ao trabalho é “Blue and Lonesome”, de Walter Jacobs, gravada originalmente no ano de 1959. As demais são: Just your fool (Walter Jacobs), Commit a crime (Chester Burnett), All of your love (Samuel Maghett), I gotta go (Walter Jacobs), Everybody knows about my good things (Miles Grayson & Lermon Horton), Ride ‘em on down (Eddie Taylor), Hate to see you go (Walter Jacobs), Hoo doo blues (Otis Hicks & Jerry West), Little rain (Ewart G. Abner Jr. & Jimmy Reed), Just like I treat you (Willie Dixon) e I can’t quit you baby (Willie Dixon). Todas as faixas foram produzidas por Don Was e os Glimmer Twins. Imperdível!

E quais os atuais projetos dos Rolling Stones? Sabe-se lá. Quem é que pode dizer o que se passa nas cabeças de quatro garotos rebeldes, inquietos e levados?


quinta-feira, 13 de abril de 2017

FELIZ ANIVERSÁRIO, FORTALEZA!




A cidade de Fortaleza completa 291 anos de existência em 13/04/2017. Entre tantas de suas belezas, a cidade conta com os verdes mares bravios, imortalizados por José de Alencar, que encantam a todos que aportam nas terras de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Essa belíssima senhora, no entanto, já não guarda mais a tranquilidade do velho Passeio Público com seu baobá centenário, nem recebe a atenção que deve ser dispensada a toda velha e gentil senhora. Por qual razão? Talvez alguns homens públicos estejam preocupados com coisas outras e achem que a cidade não lhes diz respeito. Mas a cidade não carece de determinados senhores. Tacanhos em suas mentalidades provincianas nem perceberam que a cidade de Fortaleza já não é mais aquela dos tempos do Café Java, do Bembém da Garapeira ou da Padaria Espiritual....

                         
                              




Ao mesmo tempo, Fortaleza é tudo isso e muito mais. É a cidade saudosa do poeta andarilho Mário Gomes, das Longarinas de Ednardo, do vento que sopra e, toda vez que sopra, assobia uma canção de Belchior. Fortaleza, na sua contradição, é uma ode à felicidade e a beleza. É um aplauso à voz de Kátia Freitas e às tintas de Mateus da Silva e Zé Tarciso. Mas Fortaleza é também uma elegia, um verso triste, um canto torto na denúncia dos meninos que dormem sob a marquise, do homem que mendiga no sinal, dos buracos que ameaçam engolir a cidade.

Mas Fortaleza não é nem melhor nem pior do que as outras cidades do Brasil. Fortaleza é apenas diferente nas suas idiossincrasias, nas suas formas de ver e ser, de rir de tudo, e de se rebelar. Fortaleza é bela, e nada tem de recatada. Nunca teve. Na sua melhor idade, Fortaleza segue dizendo "não" ao mal que, por ventura, lhe atravesse a vida no seu eterno "doce balanço a caminho do mar" da liberdade. Fortaleza faz 291 anos, mas nem parece. Feliz aniversário, Fortaleza!






terça-feira, 11 de abril de 2017

OUTROS JEITOS DE USAR A BOCA


Em tempos sombrios, a arte é sempre vista como algo a ser perseguido.  E o que dizer da literatura, da poesia? A história está aí como seus inúmeros exemplos de poetas perseguidxs, presxs e mortxs. Estão também registrados o banimento de teorias, livros queimados e autores renegados. O que será que pode tanto a poesia?! Talvez encontremos algumas "respostas" no livro Outros jeitos de usar a boca (2017), de Rupi Kaur, publicado pela editora Planeta, com tradução de Ana Guadalupe.




segunda-feira, 10 de abril de 2017

QUANDO LULA SERÁ PRESO?



Em meio a algaravia nonsense que abunda nas mídias nativas, muito se fala, mas pouco se aproveita. Há uma grande necessidade de vociferar, sem o menor desejo de ouvir o outro. Nesse contexto, algumas vozes precisam ser ouvidas, discutidas e analisadas. Quando se dá o caos, dificilmente o bom senso se faz presente. No entanto, não custa tentar. É o que faz Nelson Jobim, no artigo "Quando lula será preso?", publicado no Jornal Zero Hora, do RS.


Nelson Jobim
No Zero Hora
10/04/17


É pergunta recorrente.
Ouvi em palestras, festas, bares, encontros casuais, etc.
Alguns complementam: “Foste Ministro de Lula e da Dilma, tens que saber…”
Não perguntam qual conduta de Lula seria delituosa.
Nem mesmo perguntam sobre ser, ou não, culpado.
Eles têm como certo a ocorrência do delito, sem descreve-lo.
Pergunto do que se está falando.
A resposta é genérica: é a Lava-Jato.
Pergunto sobre quais são os fatos e os processos judiciais.
Quais as acusações?
Nada sobre fatos, acusações e processos.
Alguns referem-se, por alto, ao Sítio de … (não sabem onde se localiza), ao apartamento do Guarujá, às afirmações do ex-Senador Delcidio Amaral, à Petrobrás, ao PT…
Sobre o ex-Senador dizem que ele teria dito algo que não lembram.
E completam: “está na cara que tem que ser preso”.
Dos fatos não descritos e, mesmo, desconhecidos, e da culpa afirmada em abstrato se segue a indignação por Lula não ter sido, ainda, preso!
[Lembro da ironia de J.L. Borges: “Mas não vamos falar sobre fatos. Ninguém se importa com os fatos. Eles são meros pontos de partida para a invenção e o raciocínio”.]
Tal indignação, para alguns, verte-se em espanto e raiva, ao mencionarem pesquisas eleitorais, para 2018, em que Lula aparece em primeiro lugar.
Dizem: “Essa gente é maluca; esse país não dá…”
Qual a origem dessa dispensa de descrição e apuração de fatos?
Por que a desnecessidade de uma sentença?
Por que a presunção absoluta e certa da culpa?
Por que tal certeza?
Especulo.
Uns, de um facciosismo raivoso, intransigente, esterilizador da razão, dizem que a Justiça deve ser feita com antecipação.
Sem saber, relacionam e, mesmo, identificam Justiça com Vingança.
Querem penas radicais e se deliciam com as midiáticas conduções coercitivas.
Orgulham-se com o histerismo de suas paixões ou ódios.
Lutam por “uma verdade” e não “pela verdade”.
Alguns, porque olham 2018, esperam por uma condenação rápida, que torne Lula inelegível.
Outros, simplesmente são meros espectadores.
Nada é com eles.
Entre estes, tem os que não concordam com o atropelo, mas não se manifestam.
Parecem sensíveis à uma “patrulha”, que decorre da exaltação das emoções, sabotadora da razão e das garantias constitucionais.
Ora, o delito é um atentado à vida coletiva.
Exige repressão.
Mas, tanto é usurpação impedir a repressão do delito, como o é o desprezo às garantias individuais.
A tolerância e o diálogo são uma exigência da democracia – asseguram o convívio.

Nietzsche está certo: As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.


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sábado, 8 de abril de 2017

XII BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ


Fortaleza já está de portas abertas para receber todos aqueles que estarão na XII Bienal Internacional do Livro do Ceará, a qual será realizada no Centro de Eventos da cidade. O evento ocorrerá do dia 14 ao dia 23 de abril, de 2017. O tema escolhido como denominação do evento é: "Cada pessoa, um livro; o mundo, a biblioteca". A XII edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará conta com a curadoria de Lira Neto, Cleudene Aragão e Kelsen Bravos. 

A abertura será no dia 14. A edição de 2017 presta merecida homenagem ao repentista Geraldo Amâncio e ao cordelista Leandro Gomes de Barros (in memoriam). Na ocasião, a companhia de dança Edisca apresentará o espetáculo Religare. Segundo informações divulgadas pela Secretaria de Cultura do Estado, 168 escritores, nacionais e estrangeiros, passarão pela Bienal, a qual contará com 110 estandes.





Entre os muitos outros autores, chamamos a atenção para as presenças de Conceição Evaristo, Valter Hugo Mãe, Ignácio de Loyola Brandão, Leonardo Sakamoto, Tércia Montenegro, Mary del Priore e Eliane Brum.



quinta-feira, 6 de abril de 2017

MEMÓRIA LINGUÍSTICA CEARENSE


O Dicionário de conceitos históricos, de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, descreve assim o verbete "Memória":

Segundo Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas (...). A memória está nos alicerces da História, confundindo-se com o documento, com o monumento e com a oralidade (...). (SILVA; SILVA, 2009:275).

As definições acerca do verbete "memória", no referido dicionário se estendem da página 275 até a 278. Contudo, a breve citação que fazemos tem apenas o objetivo de propormos uma reflexão sobre a importância da memória na constituição da história das sociedades. Assim sendo, é extremamente louvável o projeto MEMÓRIA LINGUÍSTICA CEARENSE, gestado no âmbito do PRAETECE, grupo de pesquisa que desenvolve projeto relacionados à edição de textos, da Universidade Estadual do Ceará - UECE. O projeto Memória Linguística Cearense objetiva, por meio de palestras, divulgar os trabalhos de autores cearense, referencias para a Linguística nacional. 



A palestra de abertura do evento será sobre a obra do escritor Leonardo Mota, sendo ministrada pelo Prof. Dr. Expedito Ximenes, da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central - FECLESC, da Universidade Estadual do Ceará - UECE.



Na sequência, os demais autores contemplados, datas e respectivos palestrantes.


Aos organizadores, nossos parabéns pela iniciativa. Sucesso!


Inscrições e informações: http://www.uece.br/eventos/memorialinguistica/

A GRANDE PATAQUADA, POR ROBERTO REQUIÃO



Ultimamente está cada vez mais difícil encontrar pessoas com posicionamentos razoáveis, livres dos patrulhamentos e do ódio que se abateu sobre esse país, quando aberta a "caixa de monstros". No Parlamento e na imprensa essas vozes estão cada vez mais raras. Entre tantas nulidades, a voz do senador Roberto Requião, na política, tem se mantido imune à mediocridade que domina os políticos brasileiros. Na imprensa, Fernando Brito, Leonardo Sakamoto e Eliane Brum; entre poucos, ainda fazem a diferença. Por esta razão, e pela qualidade do que é dito, reproduzimos, aqui, do Tijolaço, o texto que segue.


Por Fernando Brito
Do Tijolaço
06/04/17



Hoje eu vou falar de patos, essas simpáticas aves da família Anatidae. Fui ao Google para me ilustrar sobre o assunto e aprendi que a família dos patos é enorme. Há o pato-mudo, o pato corredor, o pato-ferrão, o pato papão, o pato-caipira e o pato da fiesp. E assim por diante. Ah, sim! Os marrecos também fazem parte da família. E temos aí a marreca-cricri, o marreco-gritalhão, o marrecão, o marreco-pompom, o marreco de bico-amarelo….

Confesso que fiquei interessado pelo pato-mudo. O pato mudo é assim chamado porque ele não emite sons altos; o macho faz um som semelhante a um assopro; e a fêmea algo como um assobio bem discreto.

É fácil criar patos e eles se reproduzem com grande facilidade. No Brasil, os patos são milhões e milhões, embora ultimamente, informam-me, talvez por causa do clima, da crise econômica, da reforma da Previdência ou do desemprego, registra-se uma drástica diminuição na população dos patos.

O coletivo de patos é bando ou pataquada, como sugerem alguns.

Os patos são facilmente domesticados e é possível conduzir o bando pata aqui, pata acolá, porque o pato sempre vem para ver o que é que há, como diz a letra da música de Vinícius de Morais.

Assim, para amestrar e docilizar o pato, especialmente o pato-mudo, muitos criadores colocam nos aposentos do bando televisores e rádios, permanentemente sintonizados no Globo e na CBN. E, para melhor acomodá-los, forram o ambiente onde vivem com jornais e revistas criteriosamente selecionados.

Os criadores chegaram à conclusão que, sob o efeito de certas vozes, masculinas e femininas, de apresentadores e comentaristas do rádio e da televisão, os patos reproduzem-se com maior velocidade.

Quanto à dieta dos patos, algumas informações de tratadores referem-se à adoção exitosa da alfafa na alimentação dessas aves.

Mas vamos ao que interessa. Embora minha curiosidade sobre o pato-mudo, eu quero mesmo falar do pato da fiesp, um pato que se notabilizou por sua ativa performance no primeiro semestre do ano passado em algumas capitais brasileiras, especialmente na capital federal e em São Paulo, hoje o maior centro criador de patos e referência mundial na criação da ave. Tanto assim que alguns criadores russos já estão importando o pato da fiesp, crentes possam reproduzir em Moscou e Petersburgo o mesmo resultado que no Brasil.

Segundo o Google me informa, o pato da fiesp tem lá suas idiossincrasias.

Por exemplo, não gosta de nada que seja imposto. Tem horror ao imposto. Chegou até mesmo a criar um medidor para espalhar a rejeição a tudo o que é imposto. É um pato liberal, vê-se.

Outra coisa que as pesquisas no Google ensinaram-me é que, frequentemente, os patos líderes trapaceiam a pataquada. Prometem leva-los a descansar em verdes prados, a conduzi-los às águas refrescantes, a reconfortar suas almas, a protege-los de todo o mal, mas acabam por pastoreá-los por ínvios e tenebrosos caminhos.

Verbi gratia.

O rei dos patos-fiesp, prometeu ao bando que se a marreca-cricri fosse apeada do poleiro, haveria abundância, jorrariam leite e mel.

E que nada seria imposto à patolândia. Houve mesmo um grão-pato pernambucano que prometeu o milagre instantâneo da multiplicação dos pães, dos peixes, do vinho e dos tecidos de tafetá ou de morim se a referida madame fosse afastada.

Quem sabe seja por isso, porque tudo o que é imposto aumenta; porque diminui a ocupação dos patos; porque se reduz a ração do bando, e muitos se recusam a consumir alfafa como cardápio alternativo; porque os patos mais velhos estão sendo ameaçados de nunca mais poder descansar; ou seja porque as tarefas dos patos estejam sendo terceirizados para os urubus, corvos, quero-queros, a verdade é que mingua, dissolve-se o número dos anatídeos a seguir seus líderes.

Parece que as generosas contribuições financeiras dos irmãos Koch -ou do brasileiro mais rico do país e 19º mais rico do planeta – não estão dando mais conta de mobilizar os patinhos e os patões que haviam proclamado a República do Vão Livre do Masp ou o Consulado do Pato Fiesp.

Concluo esse mergulho no mundo dos patos, marrecos e gansos com duplo e contraditório sentimento: otimista e pessimista.

Pessimista por ver quanto é poderosa a aliança mídia/grande capital, tão poderosa a ponto de fazer milhões de brasileiros bem-intencionados a vestirem a camisa da CBF e marcharem pelas ruas defendendo, em última instância, as teses de seus opressores.

Otimista por ver os brasileiros, que foram feitos de patos, despertarem e, em movimento contrário, retomarem as ruas contra a entrega do país ao grande capital global, especialmente ao capital financeiro; contra a destruição da Previdência Social e da Legislação Trabalhista; contra a terceirização que instaura no país a escravidão remunerada; contra a destruição da nossa indústria e o extermínio dos empregos.

O Brasil desperta. Está na hora deste Senado também acordar e a começar a pôr um freio nessas loucuras inspiradas nas putrefatas ideias neoliberais.

Não somos o país dos patos. Não somos patos. Não há de ser o presidente de uma entidade empresarial-industrial que se distingue pelo servilismo aos que destroem as indústrias, o emprego, o consumo e a soberania que fará do Brasil o país dos patos-fiesp.



sábado, 1 de abril de 2017

A IGREJA E O SOBRADO

A saudade é um sentimento nostálgico ligado à memória, e, atire a primeira pedra quem nunca sentiu saudade de alguém ou de alguma coisa. Costumamos sentir saudade daquela comida que a avó fazia, dos passeios pela praia com aquele grande amor do qual pouco restou, do primeiro corpo, do primeiro gole, do primeiro amor.
A saudade é como a erva daninha que sempre acreditamos ter extirpado. Mas que nada! De repente, lá está ela a atazanar-nos o juízo, feito aquele maldito morcego do poema do Augusto dos Anjos. Há saudade boa de ter e há saudade que não queríamos nunca sentir.
Saudade, diz uma velha canção de Hermínio Gimenez, é palavra triste quando se perde um grande amor. Mas saudade, quando posta no plural, também pode ser utilizada como título de valsinhas, tal qual bem o fez Antenógenes Honório Silva, em Saudades de Uberaba e Saudades de Ouro Preto, o que nem por isso elimina a carga de nostalgia e tristeza que carrega.
E é assim, envolto em especial clima de nostalgia, que o poeta Manuel Bandeira inicia a crônica  “Saudades de Quixeramobim”, afirmando que, se fosse tão bom para a música quanto Antenógenes Silva, esse título seria dado a uma valsinha, e que comporia ainda “Saudades de Campanha” e Saudades de Teresópolis”. Não sei bem o motivo que levaria Bandeira a compor uma valsinha para Campanha e outra para Teresópolis, mas sei o que o levou a escrever uma crônica denominada “Saudades de Quixeramobim”, que - por pouco - não virou valsinha.
Lá em seu Itinerário de Pasárgada, Bandeira diz: "Quando caí doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose era ainda o "mal que não perdoa". Mas fui vivendo, morre-não-morre". Mesmo tendo o médico dito que poderia ainda viver muito, o poeta continuou esperando a morte, vivendo sempre como que provisoriamente, como ele mesmo chegou a afirmar.
As pessoas que tinham tuberculose eram aconselhadas a viver em lugares de clima agradável, próximos a florestas, rios e calmarias. E é assim que Manuel Bandeira vai parar na cidade de Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará. Infelizmente, quando chega o poeta, Antonio Conselheiro - há tempos - já partira, enquanto Fausto Nilo nem sabia ainda se um dia chegaria. Sobre sua estadia em Quixeramobim, diz: "creio que as saudades de Quixeramobim são as que mais me doem. Como me doem as de Paris. Porque a verdade é que não estive em Paris: estive durante três dias num quarto de hotel na Rue Balzac. Do mesmo modo, não estive em Quixeramobim: estive durante uns meses num sobradão da praça principal da cidade, em frente à velha matriz".
A crônica de Bandeira é do dia vinte e nove de agosto de mil novecentos e cinquenta e seis, e sua leitura despertou em um grande amigo meu a vontade de produzir algo que eternizasse a passagem do poeta por aquelas bandas. Após compartilhar comigo suas intenções, parece-me que ele decidiu arquivar o projeto. E acabei ficando com a impressão de sermos o que foram para Bandeira a igreja e o sobrado de Quixeramobim: "A igreja e o sobrado pareciam personagens de um apólogo dialogal. Dois fantasmas".
Como era costume nas cidades do interior, o sino repicava todas as vezes que alguém morria. Em Quixeramobim não era diferente, o que levava Bandeira a se perguntar: "Sino de Quixeramobim, baterás por mim?". Acredito que, quando da morte de Bandeira, em 1968, o sino grande da matriz não tenha batido em sua memória. E hoje, quantos quixeramobienses sabem que Manuel Bandeira morou no velho sobradão da praça da matriz "encantoado na sala da frente, que ia de um oitão a outro, com várias sacadas para o largo, mobiliada (Bandeira detestava a palavra "mobilada") com uma cama-de-vento, uma cadeira e um lavatoriozinho de ferro?". Quantos?
Tudo que Manuel Bandeira, o São João Batista do Modernismo, viveu em Quixeramobim virou saudade. O poeta não conseguiu, ao melhor estilo de Antenógenes Silva, transformar sua passagem por Quixeramobim em uma valsinha, mas, com seu talento, deu à Literatura Brasileira uma de suas mais belas crônicas. Quanto ao meu amigo Narcélio, sendo igreja ou sobrado, deverá retomar seu antigo projeto e, se não executar o que antes pretendera, quem sabe não compõe ao menos uma valsinha daquelas que encheriam Bandeira de orgulho e Antenógenes Silva de inveja.

CARVALHO, Carlos. A igreja e o sobrado. In: Prêmio Sesc de Crônicas  Rubem Braga: coletânea de crônicas. Brasília: SESC DF, 2016.