quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

JARDS MACALÉ POR JARDS MACALÉ

Na história dos movimentos que contribuíram para a cultura nacional, o Tropicalismo está, certamente, entre aqueles que mais contribuíram nos mais variados setores: literatura, drama, dança, artes plásticas e música. Ao longo do caminho percorrido da década de sessenta até esses dias de liquidez, muitos artistas pararam pelo caminho. Alguns tiveram que partir mais cedo, outros se mantiveram marginais e alguns cult; enquanto outros viraram estrelas pra lá de midiáticas, donos de egos maiores do que pode supor qualquer vã filosofia.

Nesse contexto, Jards Macalé tem se mantido como um farol referencial de uma época, bem como tem estado em perfeita conexão com as exigências impostas pela cultura contemporânea. Contudo, Jards Macalé não pode, jamais, ser rotulado disso ou daquilo; tendo em vista que seu talento poético ultrapassa qualquer tentativa de classificação. E se Chico Buarque “anda pra frente, carregando a tradição”; Macalé se impõe e lança sua poesia para além dos muros altos da tradição das Gotham cities da vida, pois é um provocador consciente da necessidade de se satirizar a mesmice e ironizar a mediocridade.

Sua obra poética não se limita, no entanto, à ironia e à sátira; mas alberga também valiosos versos sobre as dores do mundo, o amor, a vida e o cotidiano. Certamente que é preciso ter olhos e ouvidos atentos para compreender o que nos diz o poeta de Vapor barato (composta em parceria com o não menos poeta Waly Salomão), pois sua poesia é rica, certeira e voraz. Embora, aparentemente “fácil”, a poesia de Jards Macalé vai muito além do que superficialmente se observa, contendo toda uma carga de questionamentos líricos e político-sociais.
Jards Macalé em Fortaleza, fevereiro de 2017.
Foto: Carlos Carvalho.

De passagem por Fortaleza, com o show JM & JM – Jards Macalé por Jards Macalé, o experiente artista mostrou no palco da Caixa Cultural, o quanto sua canção continua em consonância como diferentes gerações de ouvintes. Para tanto, Macalé contou “apenas” com sua voz e seu violão, para entoar e encantar uma platéia ávida por ouvi-lo  em uma calma noite de fevereiro (foram cinco apresentações, do dia 03 ao dia 05 de fevereiro de 2017), quando já se avizinhavam, no céu da cidade, algumas nuvens de esperanças quase perdidas.

Um banquinho, um violão e luzes. Jards Macalé está no palco. O poeta magistral da Música Popular Brasileira encontra o músico icônico atemporal. Parece pouco, mas Jards Macalé não precisa de muito para dar o seu recado. O artista cumprimenta o público e desanda a desfiar um colar de pérolas raras do seu vastíssimo repertório musical. Da platéia, com seus celulares, alguns registram o momento único. Outros, de olhos fixos no poeta, parecem transportados para uma dimensão que não sabemos exatamente qual. A música está no ar. O poeta fala pouco, agradece, sorri e canta. Canta Moreira da Silva, canta Noel Rosa, Vinicius de Morais e Luiz Melodia. Jards Macalé canta Jards Macalé.

Difícil mesmo é dizer que momento se constitui como o ponto alto do show, uma vez que o show inteiro é de altíssima qualidade poético-musical. Assim sendo, o público se encanta com a interpretação maravilhosa de Movimento dos barcos, Hotel das estrelas, Mal secreto e Acertei no milhar.

Eternamente vanguardista, Jards Macalé sabe muito bem como passar uma mensagem e deixar o seu recado. No ano de 1969, apresentou a música Gotham City (com Capinam), no IV Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, a qual se seguiu uma histórica vaia. É claro que naquele momento o público não compreendia (ou não queria compreender), que a letra era uma crítica apuradíssima à situação política pela qual passava o país. Vejamos:

Gotham City (Jards Macalé)

Aos 15 anos eu nasci em Gotham city
Era um céu alaranjado em Gotham city
Caçavam bruxas nos telhados de Gotham city
No dia da independência nacional

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Eu fiz um quarto quase azul em Gotham city
Sobre os muros altos da tradição de Gotham city
No cinto de utilidades as verdades Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Só serei livre se sair de Gotham city
Agora vivo como vivo em Gotham city
Mas vou fugir com meu amor de Gotham city
A saída é a porta principal

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

No céu de Gotham city há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Meu amor não dorme, meu amor não sonha
Não se fala mais de amor em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal


Passados quase cinquenta anos, e tendo o Brasil sofrido mais um golpe (parlamentar, dessa vez), em um claro ataque às instituições democráticas; Gotham City, embora muitos não consigam fazer a analogia, continua bastante atual, o que comprova a atemporalidade da poesia de Jards Macalé; bem como a confirmação de um estado oligárquico, indispensável para que nada mude por essas paragens tropicais. 

Além de músico, cantor e poeta; Jards Macalé também se mostrou um “vidente” ao alertar pra se ter muito cuidado, pois havia/haveria muito ódio sendo destilado; tendo em vista que hoje (como ontem) quase “não se fala de amor em Gotham City” e “há um abismo na porta principal”. 

JM & JM – Jards Macalé por Jards Macalé é um espetáculo simplesmente imperdível. Mas cuidado, Macalé! Como eles continuam não entendendo nada, você pode acabar sendo vaiado por aí!

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