Na história dos
movimentos que contribuíram para a cultura nacional, o Tropicalismo está,
certamente, entre aqueles que mais contribuíram nos mais variados setores:
literatura, drama, dança, artes plásticas e música. Ao longo do caminho
percorrido da década de sessenta até esses dias de liquidez, muitos artistas pararam
pelo caminho. Alguns tiveram que partir mais cedo, outros se mantiveram marginais
e alguns cult; enquanto outros
viraram estrelas pra lá de midiáticas, donos de egos maiores do que pode supor
qualquer vã filosofia.
Nesse contexto, Jards
Macalé tem se mantido como um farol referencial de uma época, bem como tem
estado em perfeita conexão com as exigências impostas pela cultura contemporânea.
Contudo, Jards Macalé não pode, jamais, ser rotulado disso ou daquilo; tendo em
vista que seu talento poético ultrapassa qualquer tentativa de classificação. E se Chico Buarque “anda pra frente,
carregando a tradição”; Macalé se impõe e lança sua poesia para além dos muros altos da tradição das Gotham cities da vida, pois é um provocador
consciente da necessidade de se satirizar a mesmice e ironizar a mediocridade.
Sua obra poética não se
limita, no entanto, à ironia e à sátira; mas alberga também valiosos versos sobre
as dores do mundo, o amor, a vida e o cotidiano. Certamente que é preciso ter
olhos e ouvidos atentos para compreender o que nos diz o poeta de Vapor barato (composta em parceria com o
não menos poeta Waly Salomão), pois sua poesia é rica, certeira e voraz. Embora,
aparentemente “fácil”, a poesia de Jards Macalé vai muito além do que
superficialmente se observa, contendo toda uma carga de questionamentos líricos
e político-sociais.
De passagem por
Fortaleza, com o show JM & JM – Jards Macalé por Jards Macalé, o experiente
artista mostrou no palco da Caixa Cultural, o quanto sua canção continua em
consonância como diferentes gerações de ouvintes. Para tanto, Macalé contou “apenas”
com sua voz e seu violão, para entoar e encantar uma platéia ávida por ouvi-lo em uma calma noite de fevereiro (foram cinco apresentações, do dia 03 ao dia 05
de fevereiro de 2017), quando já se avizinhavam, no céu da cidade, algumas
nuvens de esperanças quase perdidas.
Um banquinho, um violão
e luzes. Jards Macalé está no palco. O poeta magistral da Música Popular
Brasileira encontra o músico icônico atemporal. Parece pouco, mas Jards Macalé
não precisa de muito para dar o seu recado. O artista cumprimenta o público e
desanda a desfiar um colar de pérolas raras do seu vastíssimo repertório
musical. Da platéia, com seus celulares, alguns registram o momento único.
Outros, de olhos fixos no poeta, parecem transportados para uma dimensão que
não sabemos exatamente qual. A música está no ar. O poeta fala pouco, agradece,
sorri e canta. Canta Moreira da Silva, canta Noel Rosa, Vinicius de Morais e
Luiz Melodia. Jards Macalé canta Jards Macalé.
Difícil mesmo é dizer
que momento se constitui como o ponto alto do show, uma vez que o show inteiro
é de altíssima qualidade poético-musical. Assim sendo, o público se encanta com
a interpretação maravilhosa de Movimento
dos barcos, Hotel das estrelas, Mal secreto e Acertei no milhar.
Eternamente vanguardista,
Jards Macalé sabe muito bem como passar uma mensagem e deixar o seu recado. No
ano de 1969, apresentou a música Gotham
City (com Capinam), no
IV Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, a qual se seguiu uma
histórica vaia. É claro que naquele momento o público não compreendia (ou não
queria compreender), que a letra era uma crítica apuradíssima à situação
política pela qual passava o país. Vejamos:
Gotham
City (Jards Macalé)
Aos
15 anos eu nasci em Gotham city
Era
um céu alaranjado em Gotham city
Caçavam
bruxas nos telhados de Gotham city
No
dia da independência nacional
Cuidado!
Há um morcego na porta principal
Cuidado!
Há um abismo na porta principal
Eu
fiz um quarto quase azul em Gotham city
Sobre
os muros altos da tradição de Gotham city
No
cinto de utilidades as verdades Deus ajuda
A
quem cedo madruga em Gotham city
Cuidado!
Há um morcego na porta principal
Cuidado!
Há um abismo na porta principal
Só
serei livre se sair de Gotham city
Agora
vivo como vivo em Gotham city
Mas
vou fugir com meu amor de Gotham city
A
saída é a porta principal
Cuidado!
Há um morcego na porta principal
Cuidado!
Há um abismo na porta principal
No
céu de Gotham city há um sinal
Sistema
elétrico e nervoso contra o mal
Meu
amor não dorme, meu amor não sonha
Não
se fala mais de amor em Gotham city
Cuidado!
Há um morcego na porta principal
Cuidado!
Há um abismo na porta principal
Passados quase
cinquenta anos, e tendo o Brasil sofrido mais um golpe (parlamentar, dessa vez),
em um claro ataque às instituições democráticas; Gotham City, embora muitos não consigam fazer a analogia, continua
bastante atual, o que comprova a atemporalidade da poesia de Jards Macalé; bem
como a confirmação de um estado oligárquico,
indispensável para que nada mude por essas paragens tropicais.
Além de
músico, cantor e poeta; Jards Macalé também se mostrou um “vidente” ao alertar
pra se ter muito cuidado, pois havia/haveria muito ódio sendo destilado; tendo em
vista que hoje (como ontem) quase “não se fala de amor em Gotham City” e “há um abismo na porta
principal”.
JM & JM – Jards Macalé por Jards Macalé é um espetáculo simplesmente imperdível.
Mas cuidado, Macalé! Como eles continuam não entendendo nada, você pode acabar
sendo vaiado por aí!
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