sábado, 18 de novembro de 2017

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS PERGUNTA: COMO FAÇO PARA VIVER NO BRASIL NOS DIAS ATUAIS?

No ano de 2013, o Jornal O Povo, de Fortaleza, publicou uma declaração do jurista Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme) e presidente do Conselho de Estados Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Na ocasião, o referido jurista falou sobre o politicamente correto, questionando o tratamento dado aos cidadãos que não fazem parte das minorias favorecidas com benefícios nos últimos anos.

Para sua reflexão, segue o texto na íntegra:


Não Sou: – Nem Negro, Nem Homossexual, Nem Índio, Nem Assaltante, Nem Guerrilheiro, Nem Invasor De Terras. Como faço para viver no Brasil nos dias atuais? Na …verdade eu sou branco, honesto, professor, advogado, contribuinte, eleitor, hétero… E tudo isso para quê?

Meu Nome é: Ives Gandra da Silva Martins* Hoje, tenho eu a impressão de que no Brasil o “cidadão comum e branco” é agressivamente discriminado pelas autoridades governamentais constituídas e pela legislação infraconstitucional, a favor de outros cidadãos, desde que eles sejam índios, afrodescendentes, sem terra, homossexuais ou se autodeclarem pertencentes a minorias submetidas a possíveis preconceitos. Assim é que, se um branco, um índio e um afrodescendente tiverem a mesma nota em um vestibular, ou seja, um pouco acima da linha de corte para ingresso nas Universidades e as vagas forem limitadas, o branco será excluído, de imediato, a favor de um deles! Em igualdade de condições, o branco hoje é um cidadão inferior e deve ser discriminado, apesar da Lei Maior (Carta Magna). 

Os índios, que pela Constituição (art. 231) só deveriam ter direito às terras que eles ocupassem em 05 de outubro de 1988, por lei infraconstitucional passaram a ter direito a terras que ocuparam no passado, e ponham passado nisso. Assim, menos de 450 mil índios brasileiros – não contando os argentinos, bolivianos, paraguaios, uruguaios que pretendem ser beneficiados também por tabela – passaram a ser donos de mais de 15% de todo o território nacional, enquanto os outros 195 milhões de habitantes dispõem apenas de 85% do restante dele. Nessa exegese equivocada da Lei Suprema, todos os brasileiros não-índios foram discriminados. Aos ‘quilombolas’, que deveriam ser apenas aqueles descendentes dos participantes de quilombos, e não todos os afrodescendentes, em geral, que vivem em torno daquelas antigas comunidades, tem sido destinada, também, parcela de território consideravelmente maior do que a Constituição Federal permite (art. 68 ADCT), em clara discriminação ao cidadão que não se enquadra nesse conceito. 

Os homossexuais obtiveram do Presidente Lula e da Ministra Dilma Roussef o direito de ter um Congresso e Seminários financiados por dinheiro público, para realçar as suas tendências – algo que um cidadão comum jamais conseguiria do Governo! Os invasores de terras, que matam, destroem e violentam, diariamente, a Constituição, vão passar a ter aposentadoria, num reconhecimento explícito de que este governo considera, mais que legítima, digamos justa e meritória, a conduta consistente em agredir o direito.

Trata-se de clara discriminação em relação ao cidadão comum, desempregado, que não tem esse ‘privilégio’, simplesmente porque esse cumpre a lei.. Desertores, terroristas, assaltantes de bancos e assassinos que, no passado, participaram da guerrilha, garantem a seus descendentes polpudas indenizações, pagas pelos contribuintes brasileiros. Está, hoje, em torno de R$ 4 bilhões de reais o que é retirado dos pagadores de tributos para ‘ressarcir’ aqueles que resolveram pegar em armas contra o governo militar ou se disseram perseguidos. E são tantas as discriminações, que chegou a hora de se perguntar: de que vale o inciso IV, do art. 3º, da Lei Suprema?

Como modesto professor, advogado, cidadão comum e além disso branco, sinto-me discriminado e cada vez com menos espaço nesta sociedade, em terra de castas e privilégios, deste governo.


quinta-feira, 16 de novembro de 2017

MARGARIDA SEM TERRA GANHA TORNOZELEIRA




Margarida sem terra ganha tornozeleira


Margarida é agricultora. Veio pra Rondônia atrás de um pedaço de terra. Achou terras devolutas e ocupou um pedaço, com mais 52 famílias. Viveu lá por 7 anos. Plantou, colheu, criou boi, porcos, galinhas. Nesse meio tempo, as terras de Rondônia valorizaram muito - a soja subia do Mato Grosso e o preço do hectare aumentou quase 30 vezes. Com a área limpa e o preço alto, logo apareceram os antigos donos, que já não tinham mais direitos. Mas, no Norte, direito e dinheiro andam de mãos dadas. O despejo de Margarida não tardou e foi violento. Desesperada e deprimida, sem ter pra onde ir, sofreu dois infartos seguidos de um câncer. Resolveu lutar e voltar a ocupar as terras públicas que eram dela. Foi recebida por pistoleiros do fazendeiro. Os companheiros reagiram e houve conflito, ficando um ferido de cada lado. Na justiça, foi acusada de formação quadrilha e lesão corporal. Pena de 9 anos e 10 meses. Está na penitenciária feminina de Vilhena. Hoje chegou a sua tornozeleira. Margarida continuará na luta. Não desistirá, apesar de tudo. No fim, chorei, chorei e chorei. Não há como não chorar quando a gente encontra pessoas nesse nível de sinceridade. Essa é a lição que a vida me deu hoje. Vamos em frente, ainda temos um país pra construir. #amazoniaocupada
Assinado: Frei da Comissão Pastoral da Terra


segunda-feira, 6 de novembro de 2017

O HOMEM QUE DESCOBRIU 780 LÍNGUAS NA ÍNDIA


Correspondente da BBC na Índia
5 de novembro de 2017


Quando Ganesh Devy, um ex-professor de inglês, se aventurou a buscar as línguas existentes na Índia, esperava encontrar algo parecido com um cemitério de idiomas, repleto de línguas nativas mortas ou em vias de extinção.

Ele se deparou, no entanto, com uma "floresta densa de vozes", como ele mesmo descreve, uma estrondosa Torre de Babel, em um dos países mais populosos do mundo.
Descobriu, por exemplo, que há pelo menos 16 línguas faladas no Estado de Himachal Pradesh, na região do Himalaia. Só para a palavra "neve" há 200 formas diferentes - algumas bem descritivas, como "flocos que caem na água" ou "flocos que caem quando a lua está lá em cima".

Ele também encontrou comunidades nômades no deserto de Rajasthan, no oeste do país, que usavam uma grande quantidade de palavras para se referir à paisagem árida, chegando a descrever como os homens e animais a vivenciavam.

Outra descoberta foi que os nômades falam uma língua "secreta" devido ao estigma que carregam. Eles já foram considerados "tribos criminosas" pelos ingleses e agora sobrevivem vendendo mapas nos sinais de trânsito da capital Nova Deli.

Em dezenas de aldeias de Maharashtra, não muito longe de Mumbai, na costa oeste do país, Devy se deparou, inclusive, com pessoas falando um português antigo.

Em sua jornada, Devy identificou ainda um grupo de pessoas, no arquipélago de Andamão e Nicobar, que fala karen, uma língua étnica de Mianmar, além de índios do estado de Gujarat que falam japonês.

Segundo ele, os indianos usam cerca de 125 idiomas estrangeiros como se fosse sua língua materna.
Devy é um linguista autodidata que ensinou inglês em uma universidade de Gujarat por 16 anos. Em seguida, foi viver em uma aldeia remota, onde trabalhou com as tribos. Ajudou os nativos a terem acesso a crédito, a administrar bancos de sementes e projetos de saúde. Além disso, publicou uma revista em 11 línguas tribais.

Epifania

Foi por volta dessa época que começou a epifania de Devy em relação ao poder da linguagem.
Em 1998, ele levou a uma aldeia tribal 700 cópias de sua revista, escrita na língua local. Deixou os exemplares em uma cesta para quem quisesse ou tivesse como pagar 10 rupias (US$ 0,15) por uma cópia. No fim do dia, todas as revistas tinham desaparecido.

Quando voltou, Devy encontrou várias notas de dinheiro "sujas, amassadas, encharcadas" na cesta, deixadas pelos moradores da aldeia.

"Era provavelmente o primeiro material impresso na língua deles que tinham visto na vida. Eram trabalhadores que pagaram por algo que sequer conseguiriam ler. Me dei conta do poder e orgulho primordial da língua", conta.

 Há sete anos, Devy lançou seu ambicioso projeto Pesquisa Linguística do Povo da Índia (PLSI, na sigla em inglês), um levantamento nacional das línguas indianas e de como as pessoas as percebem.
O "caçador de línguas" realizou 300 viagens em 18 meses para todos os cantos da Índia. E financiou a jornada com o dinheiro que ganhou dando aulas. Ele viajou dia e noite, revisitando alguns estados até 10 vezes e manteve religiosamente um diário.

 Também criou uma rede de voluntários que contava com cerca de 3,5 mil estudiosos, professores, ativistas, motoristas de ônibus e nômades que viajavam às partes mais remotas do país.
Entre eles, estava o motorista de um burocrata do estado de Orissa, no leste do país, que anotava em um diário as palavras novas que ouvia durante a jornada.

Os voluntários entrevistavam as pessoas e registravam a história e a geografia de suas línguas. Além disso, pediam aos locais para "desenhar seus próprios mapas" do alcance de suas línguas.
"As pessoas desenharam mapas em forma de flores, triângulos ou círculos. Os mapas são uma representação do alcance imaginário de suas línguas", afirma.

Até 2011, o levantamento de Devy havia contabilizado 780 línguas, quase metade das 1.652 registradas pelo censo do governo em 1961. Já foram publicados 39 livros dos 100 planejados sobre os resultados da pesquisa.

Línguas 'mortas'

A Índia acabou perdendo centenas de línguas por falta de apoio do governo, pela redução do número de pessoas que falam os idiomas, pela educação primária fraca em línguas locais e devido à emigração de tribos de suas aldeias nativas.

A morte de uma língua é sempre uma tragédia cultural e marca o desaparecimento de todo o conjunto de conhecimentos, fábulas, histórias, jogos e músicas de um povo.

 Mas Devy alerta que as preocupações vão além. O partido do governo, o nacionalista BJP, se esforça para impor o hindu em todo território indiano, o que ele classifica como um "ataque direto à nossa pluralidade linguística".

Ele se pergunta como as megacidades conseguirão lidar com a diversidade linguística diante dessas políticas chauvinistas.

"Me sinto mal cada vez que uma língua morre. Mas sofremos perdas piores de diversidade, como as variedades de peixes ou de arroz", afirma.

"Nossas línguas sobreviveram por serem teimosas. Somos uma democracia linguística. Para manter nossa democracia viva, temos que manter nossas línguas vivas", acrescenta.

A espantosa variedade de línguas na Índia

  • O censo de 1961 registrou a existência de 1.652 línguas na Índia
  • A Pesquisa Linguística do Povo da Índia, conduzida por Devy, contabilizou 780
  • 197 delas estão ameaçadas, sendo 42 em estado crítico, segundo a Unesco
  • São 68 alfabetos em uso
  • O país publica jornais em 35 línguas
  • O hindu é a língua mais usada, falada por 40% da população. Em seguida, vêm bengali (8%), telugu (7%), marathi (6,9%) e tamil (5,9%).
Fonte: Censo da Índia, Unesco


quarta-feira, 25 de outubro de 2017

QUERIDA FOLHA, HOJE MINHA VAGINA PODE SER DO JEITO QUE É..., POR LETÍCIA BAHIA



Mulheres dão lição à Folha de S.Paulo após reportagem esdrúxula sobre 'vaginas'. Uma das críticas viralizou nas redes sociais e a autora printou o título da matéria do jornal antes que ele fosse editado.

Segue o texto de Letícia Bahia.

Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/10/querida-folha-hoje-minha-vagina-pode-ser-do-jeito-que-e.html 


Leia a íntegra:

Querida Folha de S.Paulo,

Queria te contar que não é muito fácil ter uma vagina. Hoje me dou bastante bem com a minha, mas não foi sempre assim. Eu já quis que ela tivesse um cheiro diferente daquele que é o seu natural, e durante anos paguei a uma outra pessoa pra arrancar dela os pêlos em um processo que só pode ser definido como tortura auto infringida (que loucura, não?). Mas eu superei o tabu, e hoje minha vagina pode ser do jeito que é.

Eu queria sugerir, Folha, pra de repente você fazer uma reportagem sobre os homens que não superaram o tabu da vagina. Porque a vagina, você sabe, quase sempre precisa passar por uma série de rituais (como aqueles que eu abandonei) pra que um homem possa gostar dela. É difícil achar um homem que goste de uma vagina com cor de vagina, cheiro de vagina, pelo de vagina, gosto de vagina e todas as outras coisas de vagina que as vaginas têm. Então, Folha, a mim me parece que os homens é que têm um tabu com a vagina. Infelizmente, algumas de nós acabam comprando esse tabu. Você mesma, Folha, deu um exemplo nessa reportagem torta!

Fonte: Folha de São Paulo
“Tinha um volume, mas não me incomodava”, falou a Fernanda pra você. Só que a Fernanda emenda: “Até que no início do ano meu marido disse meio brincando: ‘nossa, você tem um negócio pendurado’. Isso mexeu com a minha feminilidade”. Olha só, Folha: tava tudo bem com a Fernanda, ela estava em paz com a própria vagina. Quem tinha um problema era o marido da Fernanda, mas ao invés de ir o marido da Fernanda sentar em um divã, conversar sobre “eu tenho sentimentos estranhos sobre a vagina da mulher que amo”, ficou a Fernanda como a torta. Você fez parecer que é ela quem tem tabu de vagina, só porque, dãr, a vagina dela não é igual a nenhuma outra. Quer dizer, na verdade a vagina da Fernanda era igual à da irmã gêmea dela. E continua sendo, porque o desfecho – você me contou – foi um par de cirurgias vaginais, uma pra cada gêmea.


E, Folha, tem outra coisa, outra coisa bem grave. Você falou bastante sobre as vaginas rosadas serem tidas como as vaginas ideias, do que deriva toda uma sorte de tratamentos para clarear a vulva. Folha, chega aqui: isso é racismo. Você não pode sair falando por aí sobre tratamentos clareadores de pele, sobre peles rosadas serem “as mais bonitas”, sem pelo menos colocar algumas perguntinhas sobre como se construiu esse gosto estético. Essa semana mesmo a Dove tomou um baile das redes sociais por conta de uma propaganda que mostrava uma mulher negra se transformando em uma mulher branca. Pegou mal, sabe? Eu sei que você é de outro tempo, mas hoje em dia esse negócio de embranquecer as pessoas, Folha, não pode mais. Não faz mais isso, tá bem? As vaginas das mulheres negras são mesmo mais escuras do que a de mulheres como eu, e tá tudo certo. O que tá errado e precisa ser tratado é uma sociedade que acha que as pessoas precisam mudar de cor pra serem bonitas.

Vamos montar junto um material pra você, Folha? Sei que você é inteligente e um pouco de leitura pode te ajudar a desconstruir esse seu – desculpe, mas está evidente – tabu de vagina. Podemos montar um grupo de estudos, você e alguns dos especialistas (ouch!) que entrevistou. Olha por exemplo o cirurgião plástico José Octávio de Freitas: “mulheres sempre se incomodaram com a aparência dos lábios”, disse o doutor. E, no entanto, cá estou eu, feliz com os meus (e não são pequenos, viu?).

Sei que não é fácil pra você falar sobre vaginas, Folha. Mas vem com a gente que a gente te ajuda. A gente te ensina tudo que há pra saber sobre elas. Porque a gente manja de vagina e não é pouco, viu?



terça-feira, 17 de outubro de 2017

I'M A COWARD, BY LIZ MERIWETHER

I’m a coward.
By Liz Meriwether 
Years ago, I went to a meeting in a hotel room with a powerful man. We started talking. He asked me about my sexual past, and I laughed and told some funny stories. I expect to talk about relationships and love and sex in meetings, since that’s what I write about. It was just the way he was asking me — he was pushing for details. I was suddenly aware of how alone I was in that room. Then he pointed to the bed next to us and said, “You know there’s a bed in here.” Like a young Dorothy Parker, with eloquence and wit beyond my years, I responded: “Yeah. I see that! Cool bed, man!”
Eventually the meeting was over, and he walked me to the door of the suite. I was starting to feel relieved it was over, when he suddenly grabbed my shoulders and held me in front of the gilded hallway mirror. I couldn’t move. He was watching me through the mirror. I could barely bring my head up. He said, “Look. Look at yourself. Do you see how beautiful you are?”
It was at that moment that I did something insane. I started laughing. Like, uproariously laughing. It was not a fun laugh. It was one of those crazy, terrifying laughs. Suddenly, I was Laura Linney in an Oscar clip. I turned my head and looked at him, still laughing, and said, “This is my worst nightmare!” That must have surprised him or offended him, because then he let me go. I headed for the door, walked through the lobby of the hotel, and didn’t stop walking until I was back inside my apartment downtown. I walked the way I walk in dreams, without feeling my feet on the ground. I was buzzing. I didn’t feel real.
It must have been my fault. It must have been something I said. Was I flirting with him? I shouldn’t have told that story. I shouldn’t have gone to his hotel room. What can I do about it? Who do I tell? I don’t have enough money for a lawyer. I don’t want to suddenly become unemployable because of something he chose to do to me. Was it that big of a deal? Did I make it up? It wasn’t an assault — it was just, like, an aggressive mirror hold. There are no laws against forcing people to look at themselves in the mirror. I’m fine. I’m tough. I’m one of the guys. It was just a weird thing that happened, and now it’s over, and I’m fine. What if I said something and he stopped me from getting another job? So I made a decision: I chose to stay quiet. I kept working with him. As I said, I’m a coward.
I know. It was a selfish choice. I was leaving him free to act this way again with someone else. My career was just starting, and I was ambitious and self-serving, and I made excuses for myself. Why was it my responsibility to change the world? I had just never imagined myself as the kind of woman who stayed quiet in those situations. I thought I was like the characters I wrote about — I thought I was a plucky young girl who fought back against injustice. A rebel. A feminist. An avenger. It turned out that I was none of those things. He held me for a few moments in front of a mirror, and what I saw was a coward. I just wanted to keep doing the thing I loved. I wanted to keep writing. The price I had to pay was my sense of self. But, as one anonymous male filmmaker was quoted saying in Vulture last week: “Waaaaah, Welcome to Hollywood.”
Just FYI, if you’re ever working in the movie business, and someone says “welcome to Hollywood” to you, that person is truly the worst. It’s bad Entourage nonsense. Hollywood isn’t a magical place that exists in a dreamscape. Hollywood is made up of the people who work here, and we are all (for the most part) human beings capable of making choices. Men who witness other men doing these things to women also have to make difficult choices. They are cowards too. I don’t know, maybe some of them feel guilty too. This guilt is how the system works. This is how the powerful stay powerful. It reminds me of the short story “The Lottery” by Shirley Jackson, where everyone in the town has to throw a stone so everyone is to blame. Silence is as destructive as it is contagious. If we tell ourselves that no one and everyone is to blame — if we shrug our shoulders and say “welcome to Hollywood” — nothing will ever change. All of us cowards need to take this moment to think about our choices and speak out in whatever way we can. The women who are standing up and actually pointing fingers are unimaginably brave.
And yet, when something like Harvey Weinstein’s behavior comes to light, the same arguments are repeated over and over again: Why did the women wait so long to report it? Why did they take money and sign nondisclosure agreements? Why did they keep working at the company? Why did they accept roles? Why did they stay friends with him? Why didn’t they kidnap Harvey and lock him in an S&M harness like the ladies in 9 to 5? I don’t know. Maybe they decided they wanted to keep working, keep supporting themselves, keep doing the thing they loved. Maybe they were ambitious and angry, and, yeah, maybe they wanted some money for having to deal with all of it. This kind of thing doesn’t only happen to heroes. It happens to normal women — women who are cowards, ambitious jerks, talented artists, lonely girls, girls who put out, girls who don’t, girls who don’t like being called “girls,” wonderful and complicated and still-forming creatures who are forced to make impossible choices that follow them forever. Life isn’t a Miramax movie. Life is a mess. Yes, I am a coward, but let’s be clear: The man in the hotel room is to blame.


quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Suicídio do reitor ou da universidade livre?, por Roberto Romano


Suicídio do reitor ou da universidade livre?
Por Roberto Romano


As  universidades públicas brasileiras foram tomadas de estupor com o suicídio cometido pelo Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo, reitor da UFSC.  A tragédia evidencia problemas éticos, científicos e políticos que marcam os tratos entre poder e conhecimento em nossa terra. O primeiro traço a chamar nossa memória encontra-se em algo que desagrega toda sociedade, em especial a reunida nos campi. Trata-se da abjeta delação que volta a ser empregada como instrumento repressivo por agentes do Estado, em setores midiáticos e na própria universidade. No caso em pauta, o estopim da crise reside numa delação contra o reitor. O dirigente foi preso e submetido ao escárnio público sem os mínimos requisitos de justiça, como o direito de ser ouvido antes de encarcerado.  Os repressores e seus aliados da imprensa não se preocuparam um só instante com a sua honra e a dignidade do cargo por ele ocupado. Ele foi exposto à execração popular sem nenhuma prudência. Em país onde ocorrem a cada instante casos como o da Escola Base, os linchamentos reiteram a barbárie.
Todos os pesquisadores e docentes que pensam e agem com prudência, recordam os procedimentos impostos à academia após o golpe de 1964. As cassações de funcionários, lentes, estudantes, anunciaram a posterior tortura, morte e aniquilação dos direitos. Delatores surgiram como cogumelos nas escolas de ensino superior, com os dedos em riste contra adversários ideológicos ou concorrentes bem sucedidos aos cargos, pesquisadores com maior notoriedade junto aos poderes públicos, à comunidade universitária mundial, ao público. O Livro Negro da USP traz relatos nauseantes de prática acusatória e anônima, na qual as baixezas emulavam a covardia. Quem foi delatado perdia tudo e foi tangido rumo às prisões ou exílio. O indigitado, não raro, era posto na “cadeira do dragão” e outros tormentos, após seguir o caminho de orgãos como o Dops em veículos oficiais, cedidos por dirigentes universitários ao aparato policial.
De certo modo o Brasil, na ditadura e na aparente democracia atual,  retoma a proeza que tornou infame parte da antiga democracia grega. Nela existiu uma lei, tida como exemplo de injustiça, que punia os “atimoi”.  Ao surgir um indivíduo com força para vencer eleições, os seus inimigos o acusavam de desvios comportamentais (por exemplo, de ter mantido relações eróticas com adultos, pagas por presentes). O candidato era destituído dos direitos cidadãos, condenado sem julgamento e passava a ser vítima dos piores abusos coletivos. Os processos registram em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinha a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a acusação, que trazia desconfiança, para definir a pena. Daí a tese de juristas nossos contemporâneos segundo a qual aquelas pessoas seriam na verdade apenados sem ter sido declarada sua culpa. Douglas M. MacDowell: (The Law in Classical Athens, Cornell Un. Press, 1978) diz que os acusados de prostituição deviam “evitar o exercício dos direitos de cidadania, ao serem tidos como “atimoi”, pois eles seriam processados se ignorassem tal veto”. A pena era a morte. Na dokimasia, exame para ingresso e saída dos cargos públicos, é assumido que “a atimia (perda dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os cidadãos privados”, segundo S.C. Todd (The Shape of Athenian LawOxford, Un. Press, 1993). Este “só” não tranquiliza, porque o grego é animal político. As penas de atimiatambém eram aplicadas aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam os seus débitos aos tribunais e à Assembleia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia. A honra e a desonra de um político eram entregues aos delatores, interessados na sua expulsão da cena pública.
Na ditadura de 1964, os acusados eram tidos, ipso facto, como “sem honra”, visto que tinham sido denunciados por “cidadãos honestos”. Recordo o exemplo edificante de um indivíduo conservador, mas honesto, naqueles dias de bacanal acusatória. O bispo de Marília, Dom Hugo Bressane de Araújo, erudito especialista em Machado de Assis e pessoa facilmente ajustável “à direita”, ao receber delatores que erguiam o dedo contra “comunistas” e “corruptos” pedia o seguinte: “o senhor (senhora) vá ao Cartório, escreva a sua denúncia, reconheça a firma e me envie, para que eu a estude”. Desapareceram os acusadores anônimos da Cúria. Mas nem sempre autoridades religiosas e políticas, sobretudo as policiais, mantiveram tal retidão ética. E mesmo após o regime autoritário, a prática hedionda dos sicofantas se manteve. Ao ser reiterada em todos os ambientes, ela se transformou em ética cujo automatismo gera boa consciência nos desonestos. Afinal, imaginam, eles fazem tudo pelo bem do país ao denunciar, sem provas e sem fundamentos, os seus concorrentes, pares, adversários políticos ou ideológicos. Nos processos judiciais, a “delação premiada” corrói impedimentos éticos. Para garantir a diminuição de penas, a língua do prisioneiro articula frases cujo conteúdo, não raro, avança inverdades e calúnias.  Quase todas a eles ditadas pelos proprietários do poder.
Quando alguns procuradores da República, falando em nome de milhões mas sem mandato para tal múnus, apresentaram ao país as “Dez Medidas contra a Corrupção”, fui chamado para a Comissão Especial da Câmara que analisava o projeto de lei resultante. Ali critiquei o uso dos delatores pagos – seu lucro, segundo o texto das Dez Medidas, seria de 5% sobre o butim amealhado – e recordei os sicofantas atenienses, genitores de todos os que delatam desde então. Ademais, indiquei o quanto era nociva a “sugestão” de armar processos a partir de provas ilícitas, mas elaboradas “de boa fé” (conferir o site oficial da Câmara dos Deputados: “Especialistas apontam falhas em medidas de combate à corrupção sugeridas pelo MP”, 22/08/2016).
Além do vício ético reunido no vocábulo “delator”, usado e abusado para perseguir quem pensa de modo diferente ao costumeiro, com prisões espetaculares e reportagens idem, precisamos examinar a prática política no interior dos campi. A Universidade Federal de Santa Catarina, a mesma do reitor falecido, tem uma história melancólica a ser exposta. Antes de indicar o caso concreto, uma premissa ética essencial. Se um reitor é alheio ao saber e ao ensino, e age tendo em vista os ditames do poder de Estado, ele representa apenas aquele poder no campus. Se traz para o interior da instituição universitária os interesses dos comprometidos de modo imediato com o poder (oligarquias, mercado, forças religiosas ou econômicas), ele é nocivo à universidade, pois na companhia daqueles interesses chegam a intolerância, ódio, falta de respeito aos outros, fanatismo.
Na Universidade Federal de Santa Catarina, existiu durante longo tempo o vezo indicado acima. Tal procedimento trouxe para a instituição os mesquinhos interesses políticos do Estado federal, estadual, municipal. A rivalidade interna foi acrescida pelas técnicas empregadas para manter o controle da reitoria. Até data recente, nas eleições reitorais da UFSC, “todos os nomes sufragados pelas urnas pertenciam às forças políticas que vinham dirigindo a UFSC desde a sua criação e que mantinham com os governos militares uma convivência pacífica ou um apoio entusiasta (...) O processo eleitoral não possibilitou, portanto, como esperavam ou aspiravam as forças de oposição ao regime militar, neste caso as organizações dos docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes, que grupos políticos não alinhados com as elites locais e nacionais pudessem ocupar os mais altos cargos da universidade” (Pedro Antonio Vieira, A armadilha das urnas: 20 anos de Eleições Diretas e de Continuísmo na UFSC, in Waldir José Rampinell (ed.): O preço do Voto. Os Bastidores de uma eleição para reitor. Florianópolis, Ed. insular, 2008).
O costume viciado das delações, jungido aos interesses múltiplos presentes no campus, ajuda a compreender a morte do reitor. É tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para a recusa das acusações sumárias, sem direito de defesa. É preciso, em nome da correta ética, impedir os delatores anônimos. Se tal coisa não for efetivada, logo voltaremos aos anos 60 ditatoriais, quando os sicofantas eram acarinhados pelo regime político, assumiam cargos que não mereciam, destruíam os vínculos de confiança e companheirismo que devem imperar na vida intelectual. Se os delatores não forem detidos e se continua a subserviência acadêmica aos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário e Mercado –  logo todos os que não curvarem a cerviz aos inquisidores serão postos entre os “atimoi”. A morte do reitor é um aviso sinistro. Saibamos aproveitá-lo.


segunda-feira, 2 de outubro de 2017

APROPRIAÇÃO CULTURAL É UMA EXPRESSÃO AMARGA DE PESSOAS PERDIDAS


Muito se tem discutido acerca do que deva ser compreendido como "apropriação cultural". Algumas discussões, no entanto, resvalam em discursos vazios que em nada contribuem para o empoderamento desse ou daquele grupo, dessa ou daquela cultura. Contudo, os debates precisam continuar acontecendo para que possamos, cada vez mais, abrir os olhos e vermos o que sempre esteve ali, tão perto: o outro.
Nesse sentido, o texto de Emir Ruivo, que reproduzimos aqui, contribui bastante para essa discussão. O link para a postagem original é:
Texto de Emir Ruivo
25/08/2017
Boa leitura!
A discussão sobre a “apropriação cultural” voltou à tona esta semana por conta dos vazamentos de imagens de Anitta com tranças nas filmagens do seu próximo video-clipe. Aparentemente, defende um grupo, ela não pode usar trança pois é uma referência da cultura africana e ela não é negra.
Anitta sempre me pareceu ter algum descendente negro, embora tenha se “esbranquiçado” com os anos. Não admiro, pessoalmente, essa avidez pela cirurgia plástica, muito menos pela busca da padronização da beleza. Mas sei que está fora da minha alçada qualquer coisa além de dar esta opinião.
De qualquer forma, as raízes étnicas da cantora são irrelevantes. Minha discussão está no que significa “apropriação cultural” e no cerne do que é cultura e propriedade.
Já de imediato, o conceito de “apropriação cultural” me parece uma cobra que se come pelo rabo posto que para haver apropriação, é preciso que haja um proprietário. Apropriar-se de algo é roubar, e você só rouba algo que tem um dono. Só que cultura não tem dono.
Cultura é, segundo a definição antropológica, o conjunto de conhecimentos, éticas, crenças, artes, moral, leis e costumes de uma sociedade. Se tem um dono (e esse dono pode até ser um grupo), você exclui quem não é dono. Excluir alguém do direito a uma cultura é excluir alguém de uma sociedade. Quer dizer, é o oposto da lógica inclusiva da qual nós deveríamos estar nos ocupando.
Mesmo que seja uma sociedade da qual o coleguinha não faça parte, a sociedade tem o dever humanitário de se abrir para quem se interessa por ela. Imaginar que, por exemplo, uma pessoa branca, oriental ou negra deve ser impedida de usar vestes indígenas é o mesmo que imaginar que um índio deve ser impedido de usar roupas. E o mesmo se aplica a Anitta. E o mesmo se aplica ao caso célebre da menina branca que foi massacrada por usar turbante.
Se formos levar isso a cabo, não vamos mais comer pizza, pois é dos italianos. E os italianos não vão comer macarrão, pois é criação chinesa. Não vamos mais jogar futebol, que é dos ingleses, e os ingleses também vão ter que desaparecer com os Beatles e os Rolling Stones, afinal o rock é criação americana. Ninguém, exceto punks, vão usar camisetas dos Ramones. Inclusive nem a maioria dos Ramones. O que não é um problema pois não existiria o rock, que vem do blues. E nem o blues, que originalmente usava violão, um instrumento espanhol.
Resumindo a história, teríamos que reinventar a roda toda vez que fôssemos fazer qualquer coisa, pois a roda é da cultura mesopotâmica.
Mas é claro que estamos pensando em exemplos extremos. O conceito de “apropriação cultural” sério, não o dos loucos, não diz isso. Ele fala, por exemplo, do uso comercial das referências culturais sem valorizar o povo. Me parece uma acepção admissível numa primeira leitura, mas amarga e até ilógica quando penso mais a fundo.
O interesse por uma cultura é, necessariamente, a valorização de um povo. A cultura é sua expressão. Se você gosta dela, como pode não gostar do povo? É como dizer “o Machado de Assis é um gênio, mas seus livros são péssimos”. Assim, quando alguém usa referências culturais, mesmo que para fins comerciais, essa pessoa está, necessariamente, valorizando o povo. (À exceção se o interesse for financeiro, mas isso é assunto para outro texto).
O conceito sério também menciona o uso da iconografia de um povo sem compreensão dos conceitos. Também me soa amargo e intolerante pois continua presumindo maniqueisticamente um proprietário que controla o significado.
Pense no exemplo da cruz. É um ícone cristão. Mas os cristãos têm exclusividade sobre ela? Ela não pode significar outra coisa para mim? O próprio Jesus de Nazaré foi crucificado junto a outras dezenas de pessoas. Porque o símbolo é dele? Ou melhor, dele não – das pessoas que usam sua figura para pregar convicções pessoais (tenho para mim que Jesus, homem simples que pregava à beira de um rio, jamais diria que um símbolo tem qualquer valor, mas isso é questão para outro momento).
Eu tenho uma moeda com a imagem de Jesus talhada. Sou ateu, mas a moeda era do meu avô. Não a guardo por causa de Jesus, mas por causa de meu avô. É meu ícone pessoal. Será que eu não posso tê-lo por não ser cristão?
Proponho um exercício para que fique mais claro o que digo: imagine dois povos num tempo em que não há comunicação. Eles habitam locais diferentes e não se conhecem. Um símbolo simples – um círculo, digamos – significa coisas opostas para ambos.
Em certo momento da história, esses povos se encontram. Agora, pergunto: qual deles, exceto pela imposição via força bruta, tem direito de determinar o que, afinal, vai significar o tal círculo? Não é mais simples que cada um veja o símbolo como o que bem entende?
Quem pode dizer que é dono de um ícone, o guardião sagrado inquestionável do sentido de um símbolo? Alguém aí disse que é essa a pessoa que está cometendo apropriação cultural? Por que para mim quem se apropria de uma cultura é quem se sente no direito de determinar seu uso. Este, sim, rouba do todo para beneficiar um grupo. A cultura é de todos e nosso maior desafio é a inclusão de todos em todas as culturas. Jamais o oposto.


domingo, 10 de setembro de 2017

EU NÃO SOU SEU NEGRO, DE JAMES BALDWIN



Escrito pelo genial James Baldwin, Eu não sou seu negro é um documentário pra lá de indispensável em tempos de ameaças obscurantistas. Simplesmente imperdível!






quinta-feira, 31 de agosto de 2017

O DISCURSO DE ANGELA DAVIS NA UFBA

Transcrição da fala de Angela Davis na Reitoria da Universidade Federal da Bahia no dia 25.7.2017



Eu não tenho nem condições de expressar a vocês o quanto estou emocionada por estar aqui nesta noite. Para mim, é assim que deveria ser a aparência da universidade. Quero agradecer à Ângela Figueiredo, ao Odara. Quero agradecer também ao NEIM pelo convite para homenagear o dia 25 de julho. Essa é minha quarta visita a Bahia e sexta ao Brasil.

Neste momento, me sinto extremamente envergonhada por ainda não ter aprendido português. Esse é o meu próximo projeto. Estou muito feliz por estar aqui celebrando com vocês o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Na Bahia, o Julho das Pretas. Estou muito entusiasmada por estar aqui no Brasil, especialmente porque tenho acompanhado os acontecimentos que vêm se desenvolvendo dentro do movimento das mulheres negras.

Me parece que, neste momento, o movimento das mulheres negras brasileiras representa o futuro do planeta. As mulheres negras brasileiras têm uma história extensa de envolvimento em lutas pela liberdade. Como tem sido simbolizado, por exemplo, pela Irmandade da Boa Morte. O conceito de Boa Morte nos convida a imaginar a imagem de um futuro melhor. Isso me leva a reconhecer as amplas contribuições das mulheres negras no Brasil e na Bahia no contexto da cultura religiosa.

Durante a minha visita, fui honrada com a possibilidade de atender uma oficina oferecida na Irmandade e também de passar um tempo na Roda de Samba da Dona Dalva. Tive a oportunidade de aprender sobre o trabalho de Dona Dalva na preservação do samba de roda. Recentemente ela recebeu um título de doutora honoris causa pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano.

Também tive a oportunidade de me encontrar e conhecer a Ebomi Nice. Quero também ressaltar que há alguns anos fui honrada com um convite para conhecer o terreiro de Mãe Stella de Oxóssi e me encontrar com ela, que me disse sobre seus esforços a fim de preservar a cultura e a religiosidade dentro das tradições baianas e que as mulheres negras estão no centro dessas tradições.

Como foi dito por Dulce Pereira, já venho ao Brasil desde 1997. Nunca vou me esquecer do encontro que ocorreu em outubro daquele ano, em São Luís do Maranhão. Tive a oportunidade de encontrar Luiza Bairros pela primeira vez. O espírito de Luiza Bairros continua presente. Também encontrei pela primeira vez Vilma Reis e tantas outras mulheres negras maravilhosas, as quais continuo a me encontrar todas as vezes que venho ao Brasil.

A atual visita, organizada pela professora doutora Ângela Figueiredo, foi um encontro organizado em um contexto mais amplo, um curso em Cachoeira sobre o feminismo negro decolonial. Quero agradecer a Ângela — toda vez que alguém chama por ela, eu também olho — por me convidar para voltar a Bahia várias vezes. As pessoas me perguntam se eu já fui ao Rio de Janeiro, a São Paulo. Não, mas eu venho a Bahia de novo, de novo e de novo.

Menciono essa escola porque ela reuniu estudantes negras do Brasil, América do Sul, África do Sul, Canadá, Estados Unidos e Porto Rico. Ao fazê-lo, produziu concepções importantes que poderiam não ter sido disponibilizadas se esse encontro não tivesse ocorrido. Todas nós, que tivemos a oportunidade de estar aqui, vindouras de outras partes do mundo, temos muita sorte de estar aqui neste momento, onde o ativismo de mulheres negras está em um nível elevado e pungente.

Como já foi dito e reiterado várias vezes, o movimento social liderado por mulheres negras é o movimento social mais importante do Brasil. Após o golpe antidemocrático que resultou na deposição de Dilma Roussef, as mulheres negras criaram a melhor esperança para este país. Muitas de nós, nos Estados Unidos, estamos entusiasmadas acompanhando a Marcha das Mulheres Negras no Brasil desde novembro de 2015. Nós continuamos a sentir as reverberações dessa Marcha. Agora estamos no Julho das Pretas.

Este é um momento difícil para o nosso planeta por vários motivos, mas, sobretudo, por termos uma guinada à direita na Europa, nos Estados Unidos, na América dos Sul e especialmente no Brasil. Não tenho nem como começar a explicar para vocês qual é o sentimento de morar nos Estados Unidos onde Donald Trump é presidente. Mas não devemos nos esquecer que, um dia após a posse de Trump, o movimento de mulheres levou para Washington três vezes mais pessoas que o número que participou da cerimônia de posse. Estima-se que mais de cinco milhões de pessoas participaram da Marcha das Mulheres contra Trump no mundo, inclusive na Antártida.

A Marcha das Mulheres em Washington foi liderada por mulheres negras, latinas, asiáticas, indígenas, muçulmanas, e também mulheres brancas. Nos encontramos em Washington, por todo o mundo e todos os países, para dizer que nós resistiremos. Todos os dias da presidência de Trump, nós resistiremos. Nós resistiremos ao racismo, à exploração capitalista, ao hetero patriarcado. Nós resistiremos ao preconceito contra o Islã, ao preconceito contra as pessoas com deficiência. Nós defenderemos o meio ambiente contra os insistentes ataques predatórios do capital. Aqui em Salvador, no dia 25 de julho, dedicado às mulheres negras na América Latina e no Caribe, afirmamos ainda de forma mais forte: com a força e o poder das mulheres negras dessa região, nós resistiremos.
Sabemos que as transformações históricas sempre começam com as pessoas. Essa é a mensagem do movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter). Quando as vidas negras realmente começarem a ter importância, isso significará que todas as vidas têm importância. E podemos também dizer especificamente que, quando as vidas das mulheres negras importam, então o mundo será transformado e teremos a certeza de que todas as vidas importam.

As lutas das mulheres negras estão conectadas com as lutas de pessoas oprimidas em todas as partes. Com aquees que dizem “não” às políticas anti-imigratórias de Trump e à construção de seu muro. Com aqueles que dizem “não” ao apartheid e ao muro que separa Israel da ocupação Palestina. Com aqueles que dizem “não” ao racismo e à misoginia na Colômbia. Com aqueles que dizem não ao sistema de castas na Índia. Estamos em solidariedade com as mulheres Dalits em suas comunidades. Com aquelas que dizem “não” à violência cotidiana, doméstica e íntima, que incide sobre as mulheres negras e que, geralmente, são impostas a elas por homens negros.

Finalmente as mulheres negras têm sido reconhecidas pelo trabalho em manter as chamas da liberdade acesas. Não é o tipo de liderança que visa dar visibilidade ou poder a indivíduos, baseada em carisma, o individualismo masculino carismático. Mas é o tipo de liderança que enfatiza as intervenções coletivas e apoia as comunidades que estão em luta. A liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva.

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, reconhecemos a importância de confrontar a violência de estado. Enquanto o racismo está saturando todas as instituições — nas questões da moradia, do emprego, da saúde e da educação — e pode ser mais dramaticamente reconhecido nos sistemas policiais e punitivos. As mulheres negras têm liderado ações contra a violência do estado, a violência policial e o racismo dentro do sistema carcerário, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.

Tenho falado sobre a liderança das mulheres negras, mas eu deveria estar me referindo, na verdade, à liderança feminista negra. É necessário enfatizar a condição da mulher negra na perspectiva de gênero e de raça, reconhecendo que também está implicado nisso classe, sexualidade e gênero, para além da convenção binária. Nosso foco está nas mulheres negras empobrecidas, inclusive as que estão encarceradas, as queer, as trans, as com deficiência. Mas também estamos conscientes que não focamos na mulher negra a partir de um arcabouço separatista, porque as mulheres negras também estão se engajando nas lutas de outros grupos. Às vezes ao ponto de elas serem excluídas desses movimentos.

As mulheres negras estão entre os grupos mais ignorados, mais subjugados e também os mais atacados deste planeta. As mulheres negras estão entre os grupos mais sem liberdade do mundo. Mas, ao mesmo tempo, as mulheres negras têm um trajetória histórica que atravessa fronteiras geográficas e nacionais de sempre manter a esperança da liberdade viva. As mulheres negras representam o que é não ter liberdade sendo, ao mesmo tempo, as mais consistentes na tradição, que não foi rompida, da luta pela liberdade, desde os tempos da colonização e escravidão até o presente.

Lembremo-nos de Rosa Parks, que sempre enfatizou que queria ser lembrada como uma mulher poderia ser livre, de tal forma que todas as pessoas pudessem ser livres. Lembremo-nos de Lilian Ngoyi, líder do movimento anti-apartheid na África do Sul, que disse, em 1956, entre as suas irmãs: “Agora que atingiram as mulheres, vocês acionaram um trator e serão esmagados”.

Carolina Maria de Jesus nos lembrou que a fome deveria nos levar a refletir sobre as crianças e sobre o futuro muito antes de o conceito de interseccionalidade ser utilizado. Lélia Gonzales insistiu que não só deveríamos compreender a complexa inter-relação de raça, classe e gênero, mas que deveríamos ter em mente as conexões entre os povos indígenas e os povos negros. Essa são as lições que nós dos Estados Unidos precisamos aprender com a história do feminismo negro no Brasil.

O que me leva a levantar o próximo ponto. Existe, geralmente, a pressuposição de que a forma mais avançada de feminismo negro é encontrada nos Estados Unidos. É verdade que há muitas figuras norte-americanas reconhecidas pelo desenvolvimento do feminismo negro. Isso não deveria se dar pelo entendimento de que nos Estados Unidos estamos mais avançados. Essa é uma visão colonialista e imperialista. Na verdade, isso ocorre porque as ideias, sejam elas conservadoras ou radicais, circulam com mais facilidade a partir dos Estados Unidos do que as ideias que emanam do Brasil. Não posso me levar tão a sério assim. A meu respeito, gosto sempre de ressaltar que ninguém jamais conheceria meu nome se pessoas de todo o mundo, inclusive do Brasil, não tivessem se organizado para exigir minha liberdade, no princípio dos anos 70.

É verdade que cada uma dessas viagens que fiz ao Brasil têm me trazido novas perspectivas. Desde a primeira conferência de Lélia Gonzales, em 1997, no Maranhão, até a escola do feminismo negro decolonial da qual participei agora. A partir disso, passo a questionar o meu papel em trazer o conhecimento feminista negro para o Brasil. Passei a perceber que nós, nos Estados Unidos, somos aquelas que precisamos aprender com os conhecimentos e as perspectivas que são produzidas pela longa história de luta feminista negra brasileira.

Precisamos aprender sobre o poder feminista negro preservado dentro da tradição do Candomblé. Precisamos aprender sobre os movimentos organizados por mulheres negras trabalhadoras domésticas na Bahia e no Brasil. Tive o privilégio de conhecer Marinalva Barbosa, que é a presidente do sindicato de trabalhadoras domésticas da Bahia. Temos muito a aprender com a atividade dessas mulheres.

Nós ainda não conseguimos nos organizar de uma maneira bem sucedida através de sindicatos dessa categoria nos Estados Unidos, apesar do fato de que mulheres negras, trabalhadoras da limpeza, terem organizado uma greve em 1881, em Atlanta, na Geórgia. Mesmo apesar do fato de que nos anos 20 e 50 tenham havido esforços, que não tiveram sucesso, de organizar sindicatos dessa categoria. Não é uma coincidência que Alicia Garza seja uma das mulheres co-fundadoras do movimento Vidas Negras Importam. Mesmo assim, ainda não temos um sindicato de trabalhadoras domésticas.

Deixem-me compartilhar com vocês algumas palavras sobre o complexo industrial carcerário. O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, estou correta? Sendo a primeira nos Estados Unidos e depois vêm Rússia e China. Os Estados Unidos está aprisionando um quarto da população carcerária de todo o mundo. Se olharmos para a população carcerária feminina, um terço está encarcerada nos Estados Unidos.

Se tivéssemos tempo esta noite, poderíamos falar mais aprofundadamente sobre como essa população carcerária reflete o capitalismo global e como esse sistema negligencia as necessidades humanas. Essas pessoas não tem acesso a moradia, educação, saúde ou qualquer outro serviço que seja necessário para a sobrevivência. A rede carcerária mundial constitui um vasto depósito onde pessoas consideradas desimportantes são descartadas como lixo. Aquelas tidas como as menos importantes são as pessoas negras, do sul global, muçulmanos e muçulmanas, indígenas.

Quando nós trabalhamos e lutamos contra a violência do estado manifestada através de práticas policiais e de encarceramento, afirmamos que as vidas negras importam, que as vidas indígenas importam. A professora Denise Carrascosa, aqui da UFBA, tem liderado um projeto de mulheres dentro do sistema carcerário chamado “Corpos indóceis e mentes livres”, um projeto entusiasmante que reune mulheres encarceradas de tal forma que elas possam dramatizar as suas realidades, as suas vidas.

Esses são os tipos de projeto inovadores que produzem conhecimentos feministas sobre a relação entre a liberdade e a falta de liberdade. Acabei de ser informada que a professora Carrascosa tem sido impedida de entrar no complexo penintenciário feminino porque ela se juntou a outras encarceradas para protestar contra o tratamento punitivo aplicado a uma mulher que foi trancafiada, sendo-lhe negado o uso de medicamentos pós-operatórios.

Em função da professora Carrascosa ter levantado a sua voz, seu projeto, que já dura sete anos, foi barrado. O que vocês farão em relação a essa situação? Quero sugerir que vocês peçam a cada uma das pessoas aqui presentes para assinar uma petição exigindo que esse projeto seja reincorporado. Sabemos que nos últimos dez anos houve um aumento de 500% na taxa de encarceramento de mulheres e que dois terços de todas as mulheres que estão encarceradas no Brasil são negras.

Isso me leva aos meus últimos dois pontos. Um deles é a questão da reprodução da violência. Nós não podemos excluir a violência doméstica e íntima das nossas teorias sobre a violência do estado e institucional. Frequentemente, agimos como se uma não tivesse relação com a outra e que, se as mulheres negras são vítimas dessa violência cotidiana praticada por seus maridos e namorados, isso significa que os homens e garotos negros são violentos. Como podemos refletir sobre isso?

Nós precisamos nos perguntar qual é a fonte dessa violência que prejudica e fere tantas mulheres negras. Qual é a relação dessa violência com a violência policial e do sistema carcerário? Se essa violência do indivíduo está conectada com a violência institucional e do estado, isso significa que não conseguiremos erradicar a violência doméstica enviando aqueles que a praticam ao sistema carcerário. Se desejamos erradicar as formas mais endêmicas de violência do indivíduo da face da Terra, então devemos eliminar também as fontes institucionais de violência. Este é o chamado para a abolição do encarceramento como a forma dominante de punição para pensarmos novas formas de abordagem para aqueles que são violentados. Este é o chamado do feminismo negro para formas de justiça decoloniais.

Meu último ponto diz respeito aos contantes esforços para conter nossa resistência. Quando nós resistimos, as instituições dominantes e, sobretudo, o estado, tentam conter a nossa resistência. Querem transformar as nossas lutas, em estratégias de consolidação do estado. O movimento pelos direitos civis é agora é reivindicado pelo estado como central em suas narrativas sobre a democracia. Mas o movimento Vidas Negras Importam, principalmente na era Trump, é considerado um insulto.
No Brasil, agora que o mito da democracia racial foi totalmente exposto, a pergunta que se apresenta é se o movimento de resistência das mulheres negras pode ser apropriado. Afirmamos que, na medida em que nos levantamos contra o racismo, nós não reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao hetero-patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se dizemos não à pobreza, nós não queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista que valoriza mais o lucro que seres humanos.

Se reconhecermos que aqueles que queriam resolver a questão da escravidão buscavam formas mais humanas de escravização, nós estaremos utilizando a lógica do racismo. Reconhecemos que a reivindicação da reforma do sistema policial e da reforma do sistema carcerário apenas mantêm as estruturas racistas ao mesmo tempo em que finge se importar com as questões raciais.

É por isso que dizemos não ao feminismo carcerário e sim ao feminismo abolicionista. É por isso que nós convocamos essa solidariedade para além das fronteiras nacionais e ressaltamos que o feminismo radical negro decolonial reconhece as nossas profundas conexões, mesmo a medida em que reconhecemos também nossas contradições.

A luta pelo acesso à água no Quilombo Rio dos Macacos vem sendo rotulada como “terrorista”. Tenho aqui em minhas mãos um apelo que vêm do Quilombo Rio dos Macacos relacionada aos seus direitos humanos de acesso à terra e à água que lerei após o evento. Mas o que eu quero dizer é que as lutas que acontecem dentro dessa comunidade estão conectadas às reivindicações para a proteção da água por populações indígenas contra o veneno trazido pelos dutos de petróleo.

Essas lutas estão conectadas também aos esforços que ocorrem em Flynn, Michigan, em expor o envenenamento das águas nas comunidades negras. Essas lutas também estão conectadas com as das comunidades palestinas, engajadas em defender as suas reservas de água, alvo constante das forças militares de Israel. Somente através da solidariedade e da luta, nós poderemos preservar o nosso acesso a água.

Quilombolas, presente!

Finalmente, quero salientar a minha alegria em estar aqui com vocês no Brasil, Bahia, Salvador, celebrando o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Mulheres negras representam o futuro. Porque mulheres negras representam uma possibilidade real de esperança na liberdade.