Muito se tem discutido acerca do que deva ser compreendido como "apropriação cultural". Algumas discussões, no entanto, resvalam em discursos vazios que em nada contribuem para o empoderamento desse ou daquele grupo, dessa ou daquela cultura. Contudo, os debates precisam continuar acontecendo para que possamos, cada vez mais, abrir os olhos e vermos o que sempre esteve ali, tão perto: o outro.
Nesse sentido, o texto de Emir Ruivo, que reproduzimos aqui, contribui bastante para essa discussão. O link para a postagem original é:
Texto de Emir Ruivo
25/08/2017
Boa leitura!
A discussão sobre a “apropriação cultural” voltou à tona
esta semana por conta dos vazamentos de imagens de Anitta com tranças nas
filmagens do seu próximo video-clipe. Aparentemente, defende um grupo, ela não
pode usar trança pois é uma referência da cultura africana e ela não é negra.
Anitta sempre me pareceu ter algum descendente
negro, embora tenha se “esbranquiçado” com os anos. Não admiro, pessoalmente,
essa avidez pela cirurgia plástica, muito menos pela busca da padronização da
beleza. Mas sei que está fora da minha alçada qualquer coisa além de dar esta
opinião.
De qualquer forma, as raízes étnicas da
cantora são irrelevantes. Minha discussão está no que significa “apropriação
cultural” e no cerne do que é cultura e propriedade.
Já de imediato, o conceito de “apropriação
cultural” me parece uma cobra que se come pelo rabo posto que para haver
apropriação, é preciso que haja um proprietário. Apropriar-se de algo é roubar,
e você só rouba algo que tem um dono. Só que cultura não tem dono.
Cultura é, segundo a definição antropológica,
o conjunto de conhecimentos, éticas, crenças, artes, moral, leis e costumes de
uma sociedade. Se tem um dono (e esse dono pode até ser um grupo), você exclui
quem não é dono. Excluir alguém do direito a uma cultura é excluir alguém de
uma sociedade. Quer dizer, é o oposto da lógica inclusiva da qual nós
deveríamos estar nos ocupando.
Mesmo que seja uma sociedade da qual o
coleguinha não faça parte, a sociedade tem o dever humanitário de se abrir para
quem se interessa por ela. Imaginar que, por exemplo, uma pessoa branca,
oriental ou negra deve ser impedida de usar vestes indígenas é o mesmo que
imaginar que um índio deve ser impedido de usar roupas. E o mesmo se aplica a
Anitta. E o mesmo se aplica ao caso célebre da menina branca que foi massacrada
por usar turbante.
Se formos levar isso a cabo, não vamos mais
comer pizza, pois é dos italianos. E os italianos não vão comer macarrão, pois
é criação chinesa. Não vamos mais jogar futebol, que é dos ingleses, e os
ingleses também vão ter que desaparecer com os Beatles e os Rolling Stones,
afinal o rock é criação americana. Ninguém, exceto punks, vão usar camisetas
dos Ramones. Inclusive nem a maioria dos Ramones. O que não é um problema pois
não existiria o rock, que vem do blues. E nem o blues, que originalmente usava
violão, um instrumento espanhol.
Resumindo a história,
teríamos que reinventar a roda toda vez que fôssemos fazer qualquer coisa, pois
a roda é da cultura mesopotâmica.
Mas é claro que estamos pensando em exemplos
extremos. O conceito de “apropriação cultural” sério, não o dos loucos, não diz
isso. Ele fala, por exemplo, do uso comercial das referências culturais sem
valorizar o povo. Me parece uma acepção admissível numa primeira leitura, mas
amarga e até ilógica quando penso mais a fundo.
O interesse por uma cultura é, necessariamente, a valorização de um povo.
A cultura é sua expressão. Se você gosta dela, como pode não gostar do povo? É
como dizer “o Machado de Assis é um gênio, mas seus livros são péssimos”.
Assim, quando alguém usa referências culturais, mesmo que para fins comerciais,
essa pessoa está, necessariamente, valorizando o povo. (À exceção se o
interesse for financeiro, mas isso é assunto para outro texto).
O conceito sério também menciona o uso da
iconografia de um povo sem compreensão dos conceitos. Também me soa amargo e
intolerante pois continua presumindo maniqueisticamente um proprietário que
controla o significado.
Pense no exemplo da cruz. É um ícone cristão.
Mas os cristãos têm exclusividade sobre ela? Ela não pode significar outra
coisa para mim? O próprio Jesus de Nazaré foi crucificado junto a outras
dezenas de pessoas. Porque o símbolo é dele? Ou melhor, dele não – das pessoas
que usam sua figura para pregar convicções pessoais (tenho para mim que Jesus,
homem simples que pregava à beira de um rio, jamais diria que um símbolo tem
qualquer valor, mas isso é questão para outro momento).
Eu tenho uma moeda com a imagem de Jesus
talhada. Sou ateu, mas a moeda era do meu avô. Não a guardo por causa de Jesus,
mas por causa de meu avô. É meu ícone pessoal. Será que eu não posso tê-lo por
não ser cristão?
Proponho um exercício para que fique mais
claro o que digo: imagine dois povos num tempo em que não há comunicação. Eles
habitam locais diferentes e não se conhecem. Um símbolo simples – um círculo,
digamos – significa coisas opostas para ambos.
Em certo momento da história, esses povos se
encontram. Agora, pergunto: qual deles, exceto pela imposição via força bruta,
tem direito de determinar o que, afinal, vai significar o tal círculo? Não é
mais simples que cada um veja o símbolo como o que bem entende?
Quem pode dizer que é dono de um ícone, o
guardião sagrado inquestionável do sentido de um símbolo? Alguém aí disse que é
essa a pessoa que está cometendo apropriação cultural? Por que para mim quem se
apropria de uma cultura é quem se sente no direito de determinar seu uso. Este,
sim, rouba do todo para beneficiar um grupo. A cultura é de todos e nosso maior
desafio é a inclusão de todos em todas as culturas. Jamais o oposto.
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