Suicídio do reitor ou da universidade livre?
Por Roberto Romano
Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/roberto-romano/suicidio-do-reitor-ou-da-universidade-livre
As
universidades públicas brasileiras foram tomadas de estupor com o suicídio
cometido pelo Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo, reitor da UFSC. A
tragédia evidencia problemas éticos, científicos e políticos que marcam os
tratos entre poder e conhecimento em nossa terra. O primeiro traço a chamar
nossa memória encontra-se em algo que desagrega toda sociedade, em especial a
reunida nos campi. Trata-se da abjeta delação que volta a ser empregada como instrumento
repressivo por agentes do Estado, em setores midiáticos e na própria
universidade. No caso em pauta, o estopim da crise reside numa delação contra o
reitor. O dirigente foi preso e submetido ao escárnio público sem os mínimos
requisitos de justiça, como o direito de ser ouvido antes de encarcerado.
Os repressores e seus aliados da imprensa não se preocuparam um só instante com
a sua honra e a dignidade do cargo por ele ocupado. Ele foi exposto à execração
popular sem nenhuma prudência. Em país onde ocorrem a cada instante casos como
o da Escola Base, os linchamentos reiteram a barbárie.
Todos os
pesquisadores e docentes que pensam e agem com prudência, recordam os
procedimentos impostos à academia após o golpe de 1964. As cassações de
funcionários, lentes, estudantes, anunciaram a posterior tortura, morte e
aniquilação dos direitos. Delatores surgiram como cogumelos nas escolas de
ensino superior, com os dedos em riste contra adversários ideológicos ou
concorrentes bem sucedidos aos cargos, pesquisadores com maior notoriedade
junto aos poderes públicos, à comunidade universitária mundial, ao público. O Livro Negro da USP traz relatos
nauseantes de prática acusatória e anônima, na qual as baixezas emulavam a
covardia. Quem foi delatado perdia tudo e foi tangido rumo às prisões ou
exílio. O indigitado, não raro, era posto na “cadeira do dragão” e outros
tormentos, após seguir o caminho de orgãos como o Dops em veículos oficiais,
cedidos por dirigentes universitários ao aparato policial.
De certo modo o
Brasil, na ditadura e na aparente democracia atual, retoma a proeza que
tornou infame parte da antiga democracia grega. Nela existiu uma lei, tida como
exemplo de injustiça, que punia os “atimoi”. Ao surgir um indivíduo com
força para vencer eleições, os seus inimigos o acusavam de desvios
comportamentais (por exemplo, de ter mantido relações eróticas com adultos,
pagas por presentes). O candidato era destituído dos direitos cidadãos,
condenado sem julgamento e passava a ser vítima dos piores abusos coletivos. Os
processos registram em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não
tinha a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a acusação, que trazia
desconfiança, para definir a pena. Daí a tese de juristas nossos contemporâneos
segundo a qual aquelas pessoas seriam na verdade apenados sem ter sido
declarada sua culpa. Douglas M. MacDowell: (The Law in Classical Athens, Cornell Un. Press, 1978) diz que os acusados de prostituição
deviam “evitar o exercício dos direitos de cidadania, ao serem tidos como
“atimoi”, pois eles seriam processados se ignorassem tal veto”. A pena era a
morte. Na dokimasia, exame para
ingresso e saída dos cargos públicos, é assumido que “a atimia (perda dos direitos) pode caber
como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os
cidadãos privados”, segundo S.C. Todd (The
Shape of Athenian Law, Oxford,
Un. Press, 1993). Este
“só” não tranquiliza, porque o grego é animal político. As penas de atimiatambém eram aplicadas
aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam os seus débitos aos
tribunais e à Assembleia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o
exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia.
A honra e a desonra de um político eram entregues aos delatores, interessados
na sua expulsão da cena pública.
Na ditadura de 1964,
os acusados eram tidos, ipso facto,
como “sem honra”, visto que tinham sido denunciados por “cidadãos honestos”.
Recordo o exemplo edificante de um indivíduo conservador, mas honesto, naqueles
dias de bacanal acusatória. O bispo de Marília, Dom Hugo Bressane de Araújo,
erudito especialista em Machado de Assis e pessoa facilmente ajustável “à
direita”, ao receber delatores que erguiam o dedo contra “comunistas” e
“corruptos” pedia o seguinte: “o senhor (senhora) vá ao Cartório, escreva a sua
denúncia, reconheça a firma e me envie, para que eu a estude”. Desapareceram os
acusadores anônimos da Cúria. Mas nem sempre autoridades religiosas e
políticas, sobretudo as policiais, mantiveram tal retidão ética. E mesmo após o
regime autoritário, a prática hedionda dos sicofantas se manteve. Ao ser
reiterada em todos os ambientes, ela se transformou em ética cujo automatismo
gera boa consciência nos desonestos. Afinal, imaginam, eles fazem tudo pelo bem
do país ao denunciar, sem provas e sem fundamentos, os seus concorrentes,
pares, adversários políticos ou ideológicos. Nos processos judiciais, a
“delação premiada” corrói impedimentos éticos. Para garantir a diminuição de
penas, a língua do prisioneiro articula frases cujo conteúdo, não raro, avança
inverdades e calúnias. Quase todas a eles ditadas pelos proprietários do
poder.
Quando alguns
procuradores da República, falando em nome de milhões mas sem mandato para tal
múnus, apresentaram ao país as “Dez Medidas contra a Corrupção”, fui chamado
para a Comissão Especial da Câmara que analisava o projeto de lei resultante.
Ali critiquei o uso dos delatores pagos – seu lucro, segundo o texto das Dez
Medidas, seria de 5% sobre o butim amealhado – e recordei os sicofantas
atenienses, genitores de todos os que delatam desde então. Ademais, indiquei o
quanto era nociva a “sugestão” de armar processos a partir de provas ilícitas,
mas elaboradas “de boa fé” (conferir o site oficial da Câmara dos Deputados:
“Especialistas apontam falhas em medidas de combate à corrupção sugeridas pelo
MP”, 22/08/2016).
Além do vício ético
reunido no vocábulo “delator”, usado e abusado para perseguir quem pensa de
modo diferente ao costumeiro, com prisões espetaculares e reportagens idem,
precisamos examinar a prática política no interior dos campi. A Universidade
Federal de Santa Catarina, a mesma do reitor falecido, tem uma história
melancólica a ser exposta. Antes de indicar o caso concreto, uma premissa ética
essencial. Se um reitor é alheio ao saber e ao ensino, e age tendo em vista os
ditames do poder de Estado, ele representa apenas aquele poder no campus. Se
traz para o interior da instituição universitária os interesses dos
comprometidos de modo imediato com o poder (oligarquias, mercado, forças
religiosas ou econômicas), ele é nocivo à universidade, pois na companhia
daqueles interesses chegam a intolerância, ódio, falta de respeito aos outros,
fanatismo.
Na Universidade
Federal de Santa Catarina, existiu durante longo tempo o vezo indicado acima.
Tal procedimento trouxe para a instituição os mesquinhos interesses políticos
do Estado federal, estadual, municipal. A rivalidade interna foi acrescida
pelas técnicas empregadas para manter o controle da reitoria. Até data recente,
nas eleições reitorais da UFSC, “todos os nomes sufragados pelas urnas
pertenciam às forças políticas que vinham dirigindo a UFSC desde a sua criação
e que mantinham com os governos militares uma convivência pacífica ou um apoio
entusiasta (...) O processo eleitoral não possibilitou, portanto, como
esperavam ou aspiravam as forças de oposição ao regime militar, neste caso as
organizações dos docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes, que
grupos políticos não alinhados com as elites locais e nacionais pudessem ocupar
os mais altos cargos da universidade” (Pedro Antonio Vieira, A armadilha das urnas: 20 anos de Eleições
Diretas e de Continuísmo na UFSC, in Waldir José Rampinell (ed.): O preço do Voto. Os Bastidores de uma
eleição para reitor. Florianópolis, Ed. insular, 2008).
O costume viciado
das delações, jungido aos interesses múltiplos presentes no campus, ajuda a compreender a morte do
reitor. É tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para
a recusa das acusações sumárias, sem direito de defesa. É preciso, em nome da
correta ética, impedir os delatores anônimos. Se tal coisa não for efetivada,
logo voltaremos aos anos 60 ditatoriais, quando os sicofantas eram acarinhados
pelo regime político, assumiam cargos que não mereciam, destruíam os vínculos
de confiança e companheirismo que devem imperar na vida intelectual. Se os
delatores não forem detidos e se continua a subserviência acadêmica aos poderes
– Executivo, Legislativo, Judiciário e Mercado – logo todos os que não
curvarem a cerviz aos inquisidores serão postos entre os “atimoi”. A morte do
reitor é um aviso sinistro. Saibamos aproveitá-lo.
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