terça-feira, 24 de março de 2020

DAQUELES QUE LEVAM HITLER DENTRO DE SI


O senhor de escravos gargalhava num quase gozo toda vez que açoitava um de seus escravizados, fosse pela mais injustificada das razões. Aquele escravizado era seu. Era sua propriedade, seu objeto. E se, por acaso morresse debaixo do açoite, aquele homem ou aquela mulher não fariam falta, pois existiam centenas que logo lhe substituiriam.

Os tempos mudaram, mas a ânsia pelo poder, a ambição e a maldade humana continuaram a crescer e se fortificar no mais íntimo do ser humano. Os tempos mudaram e também mudaram os senhores de escravos. Hoje são donos de bancos, restaurantes famosos, marcas luxuosas, apresentadores de TV, empresários de sucesso etc. Também são políticos, artistas, modelos, pensadores... Para a maioria dessas pessoas, a vida humana não vale nada. E se essas vidas forem de pessoas pobres e pretas valem menos ainda. A esses senhores, que se autointitulam “cidadãos de bem”, somente o lucro importa. Somente a economia interessa. Vidas pobres, pretas e periféricas podem ser substituídas. Afinal, é para isso que se mantém a imensa massa de escravizados contemporâneos, amontoados em seus barracos, nas imensas favelas do mundo, destituídos dos direitos mais elementares.


Autor: Jean-Baptiste Debret

O “cidadão de bem”, fascista ovacionado por discursos e ações de governantes não menos fascistas, acredita que foi escolhido por um poder divino que o ungiu, colocando-o como o responsável por salvar o mundo, não importando quantos ficarão para trás, sejam 5 ou 7 mil corpos sobre os quais deveremos pisar para  que se mantenha a economia funcionando, mantendo-se assim os cofres cada vez mais cheios. E qual seria, parafraseando Matéi Visniec, a sensação da elasticidade quando se marcha sobre cadáveres? Seria, para esses senhores, a mesma sensação do gozo do açoite do senhor de escravos, certamente.

 E tem-se a pele lanhada do entregador de comida, a cara de angústia do vendedor da loja, a ilusão do arquiteto que trabalha como motorista de aplicativo, o empreendedor que nada empreende, a não ser no seu discurso em defesa de um estado mínimo e em favor de um neoliberalismo violento, selvagem e tacanho. São escravizados defendendo o escravizador. Ambos riem e se divertem, mas somente um é açoitado. É o que poderia se classificar como uma espécie de servidão voluntária. E aqui lembramos Étienne de La Boétie (1530 – 1563) e seu texto Discurso da servidão voluntária, de 1549, cada vez mais atual.

Alguns empregadores têm ido às redes conclamar seus funcionários a voltar a trabalhar, ignorando que o Brasil vive uma pandemia. Segundo eles, ignorando tudo que dizem os cientistas, tudo não passa de uma “gripezinha”. E isso tem sido repetido pelo próprio presidente de um país à deriva. Um desses senhores chegou a afirmar que “o Brasil não pode parar por causa de cinco ou sete mil mortes”. O referido “cidadão de bem” ainda afirmou que “as consequências que vamos ter economicamente no futuro vão ser muito maior do que as pessoas que vão morrer agora”. Ressalte-se que “as pessoas que vão morrer agora” são, para esse senhor, descartáveis, pois são pobres, ou seja, são facilmente substituíveis. Essa é a voz da elite brasileira. Na verdade, nem devemos classificar como elite, uma vez que são culturalmente ignorantes e politicamente iletrados. Só são “elite” pelo poder do dinheiro que detêm. É essa voz que ecoa desde o período colonial e tem se mantido ao longo dos tempos, sustentada, antes, pelo tráfico de seres humanos e pelo latifúndio, e hoje, pela exploração da mão de obra barata e pelo abuso do poder econômico.

É por razões assim que o  “Discurso sobre o colonialismo”, de Aimé Césaire (1913 – 2008), escrito entre os anos de 1948 e 1955, continua cada vez mais atual.

Um trecho, dos mais incisivos do referido texto diz:

(...) valeria a pena estudar clinicamente, com detalhes, as formas de Hitler e do hitlerismo, revelar-lhe ao mui distinto, mui humanista, mui cristão burguês do século XX que leva dentro de si um Hitler e que ignora que Hitler o habita, que Hitler é seu demônio, que, se o vitupera, é por falta de lógica, e que no fundo o que não é perdoável em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, senão o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, e haver aplicado na Europa procedimentos colonialistas que até agora só concerniam aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da África. (CÉSAIRE, 2010: 21-22).

A sanha escravagista do burguês tupiniquim em consonância com os chacais e hienas da política nacional empurram o país para o abismo, marginalizam seu povo e pisam-lhe o pescoço, enquanto agonizam de cara na lama do caos, resultado do projeto de estado que há muito tempo foi posto em ação e que tem sido atualizado governo após governo.

Assim, nesse contexto, a pandemia de coronavírus é apenas mais um fator determinante no processo de genocídio daqueles que já não possuem mais nada a perder. A sorte está lançada. A economia ou a vida.


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