O senhor de escravos
gargalhava num quase gozo toda vez que açoitava um de seus escravizados, fosse
pela mais injustificada das razões. Aquele escravizado era seu. Era sua
propriedade, seu objeto. E se, por acaso morresse debaixo do açoite, aquele
homem ou aquela mulher não fariam falta, pois existiam centenas que logo lhe
substituiriam.
Os tempos mudaram, mas a
ânsia pelo poder, a ambição e a maldade humana continuaram a crescer e se
fortificar no mais íntimo do ser humano. Os tempos mudaram e também mudaram os
senhores de escravos. Hoje são donos de bancos, restaurantes famosos, marcas
luxuosas, apresentadores de TV, empresários de sucesso etc. Também são
políticos, artistas, modelos, pensadores... Para a maioria dessas pessoas, a vida
humana não vale nada. E se essas vidas forem de pessoas pobres e pretas valem
menos ainda. A esses senhores, que se autointitulam “cidadãos de bem”, somente
o lucro importa. Somente a economia interessa. Vidas pobres, pretas e
periféricas podem ser substituídas. Afinal, é para isso que se mantém a imensa
massa de escravizados contemporâneos, amontoados em seus barracos, nas imensas
favelas do mundo, destituídos dos direitos mais elementares.
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Autor: Jean-Baptiste Debret |
O “cidadão de bem”,
fascista ovacionado por discursos e ações de governantes não menos fascistas,
acredita que foi escolhido por um poder divino que o ungiu, colocando-o como o
responsável por salvar o mundo, não importando quantos ficarão para trás, sejam
5 ou 7 mil corpos sobre os quais deveremos pisar para que se mantenha a economia funcionando,
mantendo-se assim os cofres cada vez mais cheios. E qual seria, parafraseando
Matéi Visniec, a sensação da elasticidade quando se marcha sobre cadáveres?
Seria, para esses senhores, a mesma sensação do gozo do açoite do senhor de
escravos, certamente.
E tem-se a pele lanhada do entregador de
comida, a cara de angústia do vendedor da loja, a ilusão do arquiteto que
trabalha como motorista de aplicativo, o empreendedor que nada empreende, a não
ser no seu discurso em defesa de um estado mínimo e em favor de um
neoliberalismo violento, selvagem e tacanho. São escravizados defendendo o
escravizador. Ambos riem e se divertem, mas somente um é açoitado. É o que
poderia se classificar como uma espécie de servidão voluntária. E aqui
lembramos Étienne de La Boétie (1530 – 1563) e seu texto Discurso da servidão voluntária, de 1549, cada vez mais atual.
Alguns empregadores têm
ido às redes conclamar seus funcionários a voltar a trabalhar, ignorando que o
Brasil vive uma pandemia. Segundo eles, ignorando tudo que dizem os cientistas,
tudo não passa de uma “gripezinha”. E isso tem sido repetido pelo próprio
presidente de um país à deriva. Um desses senhores chegou a afirmar que “o
Brasil não pode parar por causa de cinco ou sete mil mortes”. O referido
“cidadão de bem” ainda afirmou que “as consequências que vamos ter
economicamente no futuro vão ser muito maior do que as pessoas que vão morrer
agora”. Ressalte-se que “as pessoas que vão morrer agora” são, para esse
senhor, descartáveis, pois são pobres, ou seja, são facilmente substituíveis.
Essa é a voz da elite brasileira. Na verdade, nem devemos classificar como
elite, uma vez que são culturalmente ignorantes e politicamente iletrados. Só
são “elite” pelo poder do dinheiro que detêm. É essa voz que ecoa desde o
período colonial e tem se mantido ao longo dos tempos, sustentada, antes, pelo
tráfico de seres humanos e pelo latifúndio, e hoje, pela exploração da mão de
obra barata e pelo abuso do poder econômico.
É por razões assim que
o “Discurso sobre o colonialismo”, de
Aimé Césaire (1913 – 2008), escrito entre os anos de 1948 e 1955, continua cada
vez mais atual.
Um trecho, dos mais
incisivos do referido texto diz:
(...) valeria a pena estudar
clinicamente, com detalhes, as formas de Hitler e do hitlerismo, revelar-lhe ao
mui distinto, mui humanista, mui cristão burguês do século XX que leva dentro
de si um Hitler e que ignora que Hitler o habita, que Hitler é seu demônio,
que, se o vitupera, é por falta de lógica, e que no fundo o que não é perdoável
em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do
homem em si, senão o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco,
e haver aplicado na Europa procedimentos colonialistas que até agora só
concerniam aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da África.
(CÉSAIRE, 2010: 21-22).
A sanha escravagista do
burguês tupiniquim em consonância com os chacais e hienas da política nacional
empurram o país para o abismo, marginalizam seu povo e pisam-lhe o pescoço,
enquanto agonizam de cara na lama do caos, resultado do projeto de estado que
há muito tempo foi posto em ação e que tem sido atualizado governo após governo.
Assim, nesse contexto, a
pandemia de coronavírus é apenas mais um fator determinante no processo de
genocídio daqueles que já não possuem mais nada a perder. A sorte está lançada.
A economia ou a vida.
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