Pragmatismo Político
20 de setembro de 2019
O título do artigo pode soar estranho à primeira vista, até porque qual
seria a relação de uma bebida açucarada com um sistema político? A propósito,
de qual segregação racial estamos falando? Um pouco mais de paciência, caro
leitor, já iremos colocar os pingos nos is, ou melhor, fechar as garrafas com
suas respectivas tampas.
Muitos já tomaram ou tomam refrigerante com regularidade. De variadas
cores e sabores, o gaseificado é um dos produtos mais consumidos do mundo.
Calcula-se que a indústria de refrigerantes bateu recordes em 2017, com
faturamentos que ultrapassam 61 bilhões de dólares. Cerca de 28% dessa quantia
é originada da bebida mais vendida, a Coca-Cola. O segundo lugar no ranking,
ostentando 10%, é ocupado pela arquirrival Pepsi.
A relação do ser humano com águas gasosas é antiga, remonta ao século IV
a.C. Nesse período, Hipócrates, considerado o pai da medicina, recomendava aos
gregos banhos regulares em águas minerais gasosas para curar determinadas
moléstias. Encontradas em diferentes regiões da Grécia antiga, os enfermos não
tinham dificuldades em esbaldar-se em alguma fonte que cruzassem pelo caminho.
A prescrição, porém, era circunscrita ao banho e não era indicada ingestão.
Somente no alvorecer do século XVI que a água gasosa passou a ser
ingerida e popularizada em diferentes regiões da Europa. Devido à grande
demanda pelo líquido, que, à princípio, era extraído de fontes naturais do
vilarejo de Spa, na Bélgica, diversos alquimistas passaram a pesquisar formas
de recriar o produto artificialmente.
Por volta de 1773, depois de sucessivas tentativas, estudiosos
desenvolveram uma bomba que fixava gás carbônico à água. Daí até a
industrialização do produto foi um salto, sobretudo porque coincidiu com a
Revolução Industrial que avançava a passos largos. Passado o tempo, algumas
pessoas acrescentaram açúcar, raízes e frutos à água, tais como gengibre e
limão.
O invento atravessou o oceano e chegou aos EUA, onde muitas farmácias
ostentavam em seus balcões uma bomba que gaseificava a água instantaneamente,
deixando ao gosto do freguês o sabor que desejava provar. A bebida que fazia
mais sucesso era a “soda”, como ficou conhecida a mistura com limão.
Refrigerante e medicina, portanto, sempre andaram juntos. Como o produto
foi desenvolvido por químicos e tinha finalidades medicinais, sua
comercialização ocorria principalmente em farmácias. E foi numa dessas boticas,
nos últimos anos do século XIX, que surgiu a Coca-Cola, o refrigerante mais
popular do planeta.
Símbolo da harmonia familiar e da fraternidade universal, conforme
versam seus comerciais desde tempos remotos, a Coca-Cola surgiu num país
segregado, cindido por leis racistas. A abolição da escravidão nos Estados
Unidos, em 1863, não foi suficiente para a população negra ser integrada à
sociedade em condições de igualdade. A ideia de superioridade do homem branco –
defendida por diversos cientistas do século XIX – deu suporte para que, em
diversos estados norte-americanos, fossem aprovadas leis de segregação racial.
Tais leis determinavam onde os negros deveriam morar, estudar, trabalhar e os
lugares que poderiam frequentar. Havia segregação nos meios de transporte,
espaços públicos e muitos estados proibiam o casamento entre negros e brancos.
A indústria de refrigerantes também foi afetada por essa atmosfera e calculou
precisamente de qual lado estaria e os lucros que iria auferir.
Não é novidade que a cocaína era um dos ingredientes da Coca-Cola (daí o
nome “Coca”, inclusive), item que já foi até objeto de chacota em comerciais de
seus concorrentes. Em 1899, a Coca saiu das farmácias, passou a ser vendida em
garrafas de vidro e já não era mais uma bebida medicinal, mas um produto
“refrescante”.
Mas a história polêmica e pouco conhecida ocorreu quando os negros
começaram a consumir o refrigerante, no começo do século XX, e foram
sistematicamente hostilizados pelos brancos. Protestos foram organizados,
cartas, reclamações e ofícios enchiam o serviço postal de membros do governo e
diretores da Coca para que proibissem imediatamente a venda e a distribuição do
produto em redutos da comunidade negra estadunidense. Segundo os reclamantes,
ao consumirem Coca-Cola, os negros poderiam viciar na cocaína contida no
refrigerante e passar a aterrorizar, espancar e matar a população branca. Os
jornais de Atlanta alarmavam, por exemplo, que assaltos aumentariam, sequestros
seriam frequentes e mulheres brancas sofreriam estupros cotidianos.
Ante ao pandemônio, a Coca-Cola retirou a cocaína da fórmula e passou a
usar folhas de coca já processadas – sem a droga inserida – e inseriu mais
açúcar e cafeína. Além disso, proibiu a venda do produto em estabelecimentos
frequentados por negros. Os marqueteiros da empresa, fieis defensores das leis
segregacionistas, aproveitaram o ensejo e criaram campanhas publicitárias para
enaltecer a população branca e proibir o consumo pelos negros.
Movida por interesses financeiros, aproveitando a abertura de um mercado
promissor refutado pela concorrente, a Pepsi-Cola, que ainda engatinhava em
suas atividades, e apostava num refrigerante mais adocicado, vendido em
vasilhames maiores pelo mesmo preço, intensificou sua publicidade e passou a
distribuir fartamente a mercadoria em comunidades negras.
Entre 1940 e 1950, a Pepsi adotou uma nova estratégia de marketing:
formou uma equipe de profissionais negros, cujo objetivo era criar estratégias
que atraíssem e estimulassem o consumo dos afro-estadunidenses. O programa
ficou conhecido como “mercado negro”.
Vendedores negros, todos eles uniformizados com as cores e o distintivo
da empresa, passaram a perambular pelas ruas do chamado Cinturão Negro do Sul
(Black Belt) e em áreas urbanas do Norte do país onde se concentrava a
população afro para oferecer o refrigerante.
Além disso, modelos negras perfilavam nas propagandas; mostruários
personalizados e cartazes eram fixados em lojas frequentadas por negros. Até
mesmo o famoso compositor de Jazz, Duke Ellington, e o diplomata, mais tarde
Prêmio Nobel, Ralph Bunche, ambos negros, foram contratados como porta-vozes da
empresa.
A campanha era tão feroz, que funcionários da Pepsi passaram a divulgar
mensagens de cunho racista proferidas por Robert W. Woodruff, o então
presidente da Coca-Cola.
O resultado da empreitada foi exitoso, pois muitas pessoas passaram a
associar a Pepsi aos negros e o consumo do refrigerante disparou.
Durante a década de 1950, as vendas da Pepsi aumentaram
vertiginosamente, acabando por ultrapassar a Coca-Cola na comunidade negra com
uma margem de três para um. Anos mais tarde, a estratégia da empresa seria
conhecida como “publicidade de nicho”, uma abordagem para criar um lugar
distinto no mercado – técnica usada hoje por diversas empresas.
A lua de mel entre a Pepsi e os negros tinha prazo de validade. Temendo
perder consumidores brancos, a empresa decide suspender o programa e passa a
investir numa imagem moderna, descolada e ligada ao público jovem, valorizando
a integração e diversidade das pessoas que participavam de suas campanhas.
Tempos mais tarde, sem muito alarde, a Coca passa a vender seu produto
nas comunidades negras. Num esforço para desassociar a imagem racista do
passado, começa a apoiar organizações estadunidenses que promovem a valorização
do negro, entre elas Associação Nacional para o Progresso
das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), fiel defensora da
multinacional e uma das maiores entusiastas de seus programas sociais.
No ano 2000, após funcionários denunciarem racismo no interior da
empresa, a Coca fechou um acordo judicial no valor de US$ 156 milhões de
dólares e doou US$ 50 milhões para a Fundação Coca-Cola apoiar programas
comunitários, vários deles em vigor no Brasil.
Atualmente, não há divisão entre os fabricantes de refrigerante pelo critério
racial. Negros estadunidenses, inclusive os que moram no Sul, figuram entre os
maiores consumidores de Coca-Cola do país. A maior parte deles, vale destacar,
não conhece ou pouco se importa sobre a relação da marca de refrigerante com a
segregação racial.
Resgatar essa história não tem o objetivo demonizar a Coca-Cola e
valorizar a Pepsi, mas sim de servir de reflexão. Empresas são movidas por
interesses, seus operadores tem faro oportunista e onde há cheiro de lucro, lá
estão os sabujos para lamber o butim.
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