Por Ivana Bentes
Revista Cult
29 de agosto de 2019
Há algo de profundamente perturbador em Bacurau, de Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles, talvez o mais importante filme contemporâneo sobre o
Brasil distópico da era Bolsonaro. Mesmo tendo sido
filmado antes das eleições de 2018 e da catástrofe política em
andamento, Bacurau é um filme visionário e violento, uma ficção científica
e política que não tem nada de alegórica. Ao contrário, é explicita e brutal,
de uma lucidez aterradora.
Um filme em que os gêneros faroeste, ficção científica, filme de terror,
filmes de ação hollywoodianos, rambos e exterminadores se encontram com um
rural contemporâneo que explode clichês.
Bacurau é um extraordinário remix do imaginário hollywoodiano com a
tradição do Cinema Novo
brasileiro: a estética da fome, a estética do sonho e a pedagogia da violência
de Glauber Rocha com banhos de
sangue prêt-à-porter vindos dos filmes de ação e reality shows.
Um filme de crítico de cinema, de cinéfilo e de um diretor que chegou ao auge
da destreza narrativa.
Cinema Transgênero
Com Bacurau Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazem
uma espécie de faroeste transgênero, no sentido dos gêneros do cinema, mas
também ao explodir os clichês dos comportamentos. Um cangaço trans em que cada
espectador projeta suas referências e desejos.
Mas o que o aproxima do Glauber de Deus e o diabo na
terra do sol, de 1964, ou de O dragão da maldade contra o santo
guerreiro, de 1969? Estamos falando de filmes de invenção de um imaginário
rural brasileiro catártico, que inventam uma mística política vinda do povo.
Vinda dos oralistas, dos interioranos, do inconsciente explodido das periferias
rurais do Brasil.
Mas são muitas as referências: o Godard de Weekend à
francesa (1967) ou de Alphaville (1965), ficção cientifica
godardiana profundamente distópica. Com a diferença que não há mais nenhum
romantismo em Bacurau, apenas um sarcasmo ou riso vingador ou irônico.
Como na cena das execuções públicas no Anhangabaú, exibidas na TV, cenas que
ecoam os linchamentos midiáticos que são as novas formas de execuções públicas.
Mad Max sertanejo
O filme trata de questões urgentes: crise da água e do meio ambiente,
empresas e políticos com ethos milicianos, forças paramilitares ou
mercenários globais. Atravessada por essas forças, uma nova Canudos na beira da
estrada ou uma cidade Mad Max sertaneja. Uma Canudos genérica, pronta
para explodir. Tudo filmado como uma espécie de reality show perverso e
alucinatório, com jogos violentos e extremos e com personagens estranhamente
familiares e “normais”.
Mas do que se trata o filme? Antes de mais nada de um rural
contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente conectadas
com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias de vigilância e
controle, telas de LED, drones, carros e motos possantes, distribuição de
psicotrópicos e remédios que controlam o humor, uma cidade rústica, mas que
poderia protagonizar um episódio de Black Mirror e que querem apagar do Google
Mapa.
O que fazer diante do capitalismo gore?
A segunda questão é exatamente essa. O que podem (como agir, resistir,
se governar) as comunidades que estão sendo atacadas e apagadas pelo
capitalismo das “tripas e sangue”? E aqui tomo emprestado o conceito da
mexicana Sayak Valencia para descrever a vida nas fronteiras de Tijuana, em que
comunidades inteiras têm que lidar com o que nomeia de “capitalismo gore”, um
capitalismo mafioso, da narcocultura, milícias, assassinatos.
Esse capitalismo gore, com suas tripas e sangue, é também uma construção
cultural. O termo tem origem no gênero cinematográfico splatter, com o
uso gráfico e extremo da violência, o grotesco e a violência explícita como
linguagem. O assujeitamento e ações predatórias, onde se pode infligir dor e
violência contra os corpos, mas também pensar a violência como
necroempoderamento.
Diante de um neoliberalismo que fracassou na sua utopia de mercado,
diante de uma democracia em agonia, os sujeitos, os cidadãos, a comunidade
também quer partilhar e participar da violência como forma de resistência e
sobrevivência.
As fronteiras, as cidade das bordas e periferias, as periferias, as
comunidades apelam para um autogoverno e ações extrajurídicas. Como em Canudos
amotinada, novos laboratórios do pós-colonialismo, mas também das insurreições
contemporâneas. Enclaves, tribos, comunidades distópicas e utópicas se
inventando.
Os insurgentes em uma democracia em agonia
Diante de fantasias de poder ultraconservadoras, diante de figuras
ultraviolentas como Witzels e Bolsonaros, seres “endriagos”, demolidores, que
surgem produzindo a gestão da morte, as comunidades se apropriam da violência
como ferramenta de empoderamento e de resistência. Uma saída possível do lugar
de vítima para a de vingadores.
Bacurau traz de volta o imaginário das guerrilhas dos anos 70 sem
fazer qualquer menção, sem qualquer discurso político ou panfletário,
simplesmente a narrativa empurra os personagens às armas!
Mas quem são esses novos heróis de uma Canudos revisitada? O Brasil que
emergiu no ciclo democrático dos últimos 13 anos, as minorias que se tornaram
sujeitos do discurso, os ex-quecidos do Brasil rural, ribeirinho,
periférico, as figuras fronteiriças, como a extraordinária cangaceira trans,
encarnada por Silvero Pereira.
Uma Canudos remixada que traz também personagens de uma dor extrema,
como a mãe diante do filho executado no escuro, com o uniforme do colégio, uma
cena arrepiante que vai entrar para a história do cinema brasileiro. E toda a
comoção da cidade diante das mortes seriais.
Os personagens de Bacurau trazem nos corpos, nos cabelos, na
cor da pele, um Brasil que emergiu e ganhou visibilidade. Homens e mulheres,
negros e negras, trans, putas, os caboclos e povos originários. Magníficas as
cenas de um devir índio dos personagens que andam e vivem nus nas suas casas de
barro, falando com as plantas, vivendo em uma temporalidade estendida, donos de
poderes mágicos e de uma cosmovisão.
Impossível não ver neste faroeste caboclo sideral os banhos de sangue,
as Marielles assassinadas, a potência das
mulheres, todo um novo cangaço das lutas de maiorias, minorias e transgêneros.
Hiper realismo alucinatório
Não há nada de fantasioso em Bacurau, o filme é de uma clareza e
brutalidade alucinantes, uma espécie de documentário sobre o imaginário em que
estamos. O que poderia ser traumático, o jorro de sangue, a violência gore, todos
os corpos dilacerados, cabeças decepadas, os requintes de crueldade e o gozo e
erotismo diante da morte se tornam elementos catárticos e redentores ao final
do filme.
Diante do trauma político em que estamos. Diante da percepção cotidiana
de que “estamos sendo atacados” em nossos valores, em nossos impulsos vitais,
em nossas vidas, em nossas sexualidades, Kleber Mendonça apresenta uma
guerrilha de bolso. Um laboratório na cidadezinha do interior de Pernambuco.
Bacurau é meio Dogville de Lars Von Trier.
Bacurau é Dogville, Alphaville, Canudos, um território separado
geográfica e temporalmente do resto do país. O Brasil, São Paulo, são ficções
distantes. Como a República era uma ficção para o arraial sertanejo. Como
em Os sertões de Euclides da Cunha, Kleber Mendonça
nos apresenta a Terra, o Homem e a Luta.
E que emoção ver o cinema glauberiano e o imaginário euclidiano vivos,
reinventados em um presente urgente que atualiza personagens como Antônio das
Mortes, Corisco, Lampião, a mística política presente em um mesmo filme sem fim
que estamos fazendo, uma brasiliana contemporânea.
Bacurau traz uma linguagem impactante. Um remix de Glauber com
Tarantino e Godard, e ainda revisita o tropicalismo cinematográfico de filmes
como Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr .,que proclamava em 1969 que “aqui
é o fim do mundo” .
Uma ficção científica apocalíptica que é um retrato do Brasil em
2019. Não identificado, a música de Caetano cantada por
Gal Costa, que abre o filme, vem diretamente deste espaço sideral, anos 60/70,
nossos “negros verdes anos”, de ditadura militar e do auge de
invenções na cultura, uma explosão criativa de cinemanovismo, tropicalismo etc.
Kleber Mendonça revisita o lado B do tropicalismo solar: distopia, anarquia, um
tropicalismo underground e sombrio que não chegou na cultura de massas.
Efeitos colaterais
Bacurau produz efeitos colaterais e sensoriais imediatos. Seja um
estupor melancólico frente ao cenário político que estrebucha na tela, seja o
efeito catártico. Ouvi pessoas que gritam e aplaudem, urram diante das mortes
horríveis, cabeças decepadas e castigos infligidos aos vilões. Outras despertam
eufóricas com as imagens, a montagem, como se fosse um soco ou um pegar pelos
ombros que nos sacode por inteiro. Ou ainda um choro, uma comoção, não se sabe
bem por que, mas que o filme desata, como esses nós que se desfazem sozinhos
depois que já ferimos os dedos da mão tentando abrí-los.
São muitas as referências ao cangaço, ao sertanejo, aos jagunços, aos
beatos, aos pré-revolucionários de Glauber, os condenados da terra de Frantz Fanon, os resistentes de
um Brasil que luta pela terra, pela água, pela comunidade, pela Amazônia, pela vida.
Em Bacurau, o mais importante é a comunidade e o comum. As
lideranças são múltiplas, descentralizadas: a cangaceira trans, a médica
Domingas, o professor, as lideranças espirituais. Muitas cabeças e um só corpo.
Ao final uma luta, um duelo, um acertar de contas entre essa diversidade,
esse Brasil, esses personagens insurgentes e disruptivos e o militarismo
corporativo, o capitalismo miliciano, o empreendedorismo gore. Vai faltar
caixões?
As comunidades, os enclaves, os indígenas, a juventude periférica, as
esquerdas, os estudantes universitários, os negros e negras, até o momento
desconsideraram o discurso radical, de pegar em armas, usar a força física, se
armar para fazer a disputa política. Mas o que esperar diante de um Estado que
age extra judicialmente e fora da lei?
Quando um governante diz que tem “que mirar bem na cabecinha” e matar
seus “inimigos” como em um filme hollywoodiano ruim, ou chega de helicóptero
sobre um corpo abatido pela polícia e comemora como um gol, esse imaginário e
esse desejo de justiçamento não produzem um imaginário sem controle e perverso?
Se o Estado pode ter drones fatais que atiram para matar, não veremos em
um futuro imediato um Rio de Janeiro pilotando drones de autodefesa e ataques?
Uma ficção política plausível e aterradora que mostra como se produz
Marighellas, Conselheiros e Zumbis, mas também Mitos, Witzels,
ultra-extremistas de todos os matizes.
Diante de um humanismo que fracassou, Bacurau sintetiza o
Brasil brutal, distópico em que a partilha da violência e a posse de armas e de
justiçamento passa a ser feita não apenas pelo “cidadão de bem” conservador,
mas surge, como na década de 70 – com as guerrilhas urbanas e ligas camponesas
– como uma saída possível, uma reação coletiva, diante de uma democracia e de
um Estado colapsados.
Kleber Mendonça Filho não faz uma leitura piedosa de tudo o que está ai.
Faz um manifesto cinematográfico, com uma linguagem sofisticada, um apuro
estético, uma destreza em conduzir a narrativa. Deixa uma pergunta. Qual a
saída diante da necropolítica? O
necroemponderamento? A resistência vital? A violência como uma linguagem e um
poder de transformação?
Mas também uma saída mágica, uma mística política. Porque “precisamos de
todos os santos e orixás, amém” para atravessar o deserto e esse imaginário
adoecido. Precisamos acreditar na política e no cinema, na cultura e na
arte, na educação, nas resistências
cotidianas, nos enclaves e motins.
Afinal o que é um cinema disruptivo? E aqui volto a Glauber e a toda a
radicalidade da arte em tempos de barbárie, “deve ser uma mágica capaz de
enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade
absurda”.
Podemos também invocar outro grito de guerra das lutas contemporâneas,
uma guerrilha rural e urbana que se alastra: “As putas as bi, as travas e as
sapatão tão tudo preparadas pra fazer revolução”.
Nesse sentido, Bacurau também tem um forte protagonismo
feminino. Lia de Itamaracá como a liderança política e mística da comunidade e
Sonia Braga, uma médica de pés no barro. Bacurau despe Sonia Braga de
todo um imaginário de glamour construído nos filmes brasileiros e estrangeiros
ao mostrá-la com todas as marcas da idade, cabelos brancos, um corpo nu, uma
mulher na sua maturidade, quase uma “médica cubana” na sua abnegação e cola
comunitária, uma atriz excepcional que se reposiciona desde Aquarius e,
em Bacurau, transcende e se reinventa. Fazer “desaparecer” uma atriz como
Sonia em uma comunidade de atores incríveis e pouco conhecidos é um feito.
Os invasores
Afinal quem são os invasores de Bacurau? “Estamos sob ataque”,
percebem os moradores. A chave não está apenas no grupo de gringos predadores
da água e assassinos, do prefeito corrupto, mas também na dupla de brasileiros
sulistas (em oposição aos moradores nordestinos) que se identifica com esses
grupos ultra conservadores. São os primeiros a serem sacrificados. Os que se
acham “brancos”, superiores à comunidade local, os que se identificam com seu
próprio opressor. Esses são os descartáveis. A classe média de extrema-direita
é a primeira a ser sacrificada pelos ultraconservadores. Ousem questionar e virem
os inimigos também. Trágico e sarcástico, mas a cena dessa revelação no filme
vale por todo um tratado sociológico. O cinema faz ver!
IVANA BENTES é ensaísta, professora Titular da UFRJ, pesquisadora do Programa
de Pós Graduação em Comunicação da UFRJ e da Pro Reitoria de Extensão da UFRJ.
Autora de Midia-Multidão: estéticas da comunicação e
biopolítica (Sulina), entre outros.