quarta-feira, 25 de outubro de 2017

QUERIDA FOLHA, HOJE MINHA VAGINA PODE SER DO JEITO QUE É..., POR LETÍCIA BAHIA



Mulheres dão lição à Folha de S.Paulo após reportagem esdrúxula sobre 'vaginas'. Uma das críticas viralizou nas redes sociais e a autora printou o título da matéria do jornal antes que ele fosse editado.

Segue o texto de Letícia Bahia.

Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/10/querida-folha-hoje-minha-vagina-pode-ser-do-jeito-que-e.html 


Leia a íntegra:

Querida Folha de S.Paulo,

Queria te contar que não é muito fácil ter uma vagina. Hoje me dou bastante bem com a minha, mas não foi sempre assim. Eu já quis que ela tivesse um cheiro diferente daquele que é o seu natural, e durante anos paguei a uma outra pessoa pra arrancar dela os pêlos em um processo que só pode ser definido como tortura auto infringida (que loucura, não?). Mas eu superei o tabu, e hoje minha vagina pode ser do jeito que é.

Eu queria sugerir, Folha, pra de repente você fazer uma reportagem sobre os homens que não superaram o tabu da vagina. Porque a vagina, você sabe, quase sempre precisa passar por uma série de rituais (como aqueles que eu abandonei) pra que um homem possa gostar dela. É difícil achar um homem que goste de uma vagina com cor de vagina, cheiro de vagina, pelo de vagina, gosto de vagina e todas as outras coisas de vagina que as vaginas têm. Então, Folha, a mim me parece que os homens é que têm um tabu com a vagina. Infelizmente, algumas de nós acabam comprando esse tabu. Você mesma, Folha, deu um exemplo nessa reportagem torta!

Fonte: Folha de São Paulo
“Tinha um volume, mas não me incomodava”, falou a Fernanda pra você. Só que a Fernanda emenda: “Até que no início do ano meu marido disse meio brincando: ‘nossa, você tem um negócio pendurado’. Isso mexeu com a minha feminilidade”. Olha só, Folha: tava tudo bem com a Fernanda, ela estava em paz com a própria vagina. Quem tinha um problema era o marido da Fernanda, mas ao invés de ir o marido da Fernanda sentar em um divã, conversar sobre “eu tenho sentimentos estranhos sobre a vagina da mulher que amo”, ficou a Fernanda como a torta. Você fez parecer que é ela quem tem tabu de vagina, só porque, dãr, a vagina dela não é igual a nenhuma outra. Quer dizer, na verdade a vagina da Fernanda era igual à da irmã gêmea dela. E continua sendo, porque o desfecho – você me contou – foi um par de cirurgias vaginais, uma pra cada gêmea.


E, Folha, tem outra coisa, outra coisa bem grave. Você falou bastante sobre as vaginas rosadas serem tidas como as vaginas ideias, do que deriva toda uma sorte de tratamentos para clarear a vulva. Folha, chega aqui: isso é racismo. Você não pode sair falando por aí sobre tratamentos clareadores de pele, sobre peles rosadas serem “as mais bonitas”, sem pelo menos colocar algumas perguntinhas sobre como se construiu esse gosto estético. Essa semana mesmo a Dove tomou um baile das redes sociais por conta de uma propaganda que mostrava uma mulher negra se transformando em uma mulher branca. Pegou mal, sabe? Eu sei que você é de outro tempo, mas hoje em dia esse negócio de embranquecer as pessoas, Folha, não pode mais. Não faz mais isso, tá bem? As vaginas das mulheres negras são mesmo mais escuras do que a de mulheres como eu, e tá tudo certo. O que tá errado e precisa ser tratado é uma sociedade que acha que as pessoas precisam mudar de cor pra serem bonitas.

Vamos montar junto um material pra você, Folha? Sei que você é inteligente e um pouco de leitura pode te ajudar a desconstruir esse seu – desculpe, mas está evidente – tabu de vagina. Podemos montar um grupo de estudos, você e alguns dos especialistas (ouch!) que entrevistou. Olha por exemplo o cirurgião plástico José Octávio de Freitas: “mulheres sempre se incomodaram com a aparência dos lábios”, disse o doutor. E, no entanto, cá estou eu, feliz com os meus (e não são pequenos, viu?).

Sei que não é fácil pra você falar sobre vaginas, Folha. Mas vem com a gente que a gente te ajuda. A gente te ensina tudo que há pra saber sobre elas. Porque a gente manja de vagina e não é pouco, viu?



terça-feira, 17 de outubro de 2017

I'M A COWARD, BY LIZ MERIWETHER

I’m a coward.
By Liz Meriwether 
Years ago, I went to a meeting in a hotel room with a powerful man. We started talking. He asked me about my sexual past, and I laughed and told some funny stories. I expect to talk about relationships and love and sex in meetings, since that’s what I write about. It was just the way he was asking me — he was pushing for details. I was suddenly aware of how alone I was in that room. Then he pointed to the bed next to us and said, “You know there’s a bed in here.” Like a young Dorothy Parker, with eloquence and wit beyond my years, I responded: “Yeah. I see that! Cool bed, man!”
Eventually the meeting was over, and he walked me to the door of the suite. I was starting to feel relieved it was over, when he suddenly grabbed my shoulders and held me in front of the gilded hallway mirror. I couldn’t move. He was watching me through the mirror. I could barely bring my head up. He said, “Look. Look at yourself. Do you see how beautiful you are?”
It was at that moment that I did something insane. I started laughing. Like, uproariously laughing. It was not a fun laugh. It was one of those crazy, terrifying laughs. Suddenly, I was Laura Linney in an Oscar clip. I turned my head and looked at him, still laughing, and said, “This is my worst nightmare!” That must have surprised him or offended him, because then he let me go. I headed for the door, walked through the lobby of the hotel, and didn’t stop walking until I was back inside my apartment downtown. I walked the way I walk in dreams, without feeling my feet on the ground. I was buzzing. I didn’t feel real.
It must have been my fault. It must have been something I said. Was I flirting with him? I shouldn’t have told that story. I shouldn’t have gone to his hotel room. What can I do about it? Who do I tell? I don’t have enough money for a lawyer. I don’t want to suddenly become unemployable because of something he chose to do to me. Was it that big of a deal? Did I make it up? It wasn’t an assault — it was just, like, an aggressive mirror hold. There are no laws against forcing people to look at themselves in the mirror. I’m fine. I’m tough. I’m one of the guys. It was just a weird thing that happened, and now it’s over, and I’m fine. What if I said something and he stopped me from getting another job? So I made a decision: I chose to stay quiet. I kept working with him. As I said, I’m a coward.
I know. It was a selfish choice. I was leaving him free to act this way again with someone else. My career was just starting, and I was ambitious and self-serving, and I made excuses for myself. Why was it my responsibility to change the world? I had just never imagined myself as the kind of woman who stayed quiet in those situations. I thought I was like the characters I wrote about — I thought I was a plucky young girl who fought back against injustice. A rebel. A feminist. An avenger. It turned out that I was none of those things. He held me for a few moments in front of a mirror, and what I saw was a coward. I just wanted to keep doing the thing I loved. I wanted to keep writing. The price I had to pay was my sense of self. But, as one anonymous male filmmaker was quoted saying in Vulture last week: “Waaaaah, Welcome to Hollywood.”
Just FYI, if you’re ever working in the movie business, and someone says “welcome to Hollywood” to you, that person is truly the worst. It’s bad Entourage nonsense. Hollywood isn’t a magical place that exists in a dreamscape. Hollywood is made up of the people who work here, and we are all (for the most part) human beings capable of making choices. Men who witness other men doing these things to women also have to make difficult choices. They are cowards too. I don’t know, maybe some of them feel guilty too. This guilt is how the system works. This is how the powerful stay powerful. It reminds me of the short story “The Lottery” by Shirley Jackson, where everyone in the town has to throw a stone so everyone is to blame. Silence is as destructive as it is contagious. If we tell ourselves that no one and everyone is to blame — if we shrug our shoulders and say “welcome to Hollywood” — nothing will ever change. All of us cowards need to take this moment to think about our choices and speak out in whatever way we can. The women who are standing up and actually pointing fingers are unimaginably brave.
And yet, when something like Harvey Weinstein’s behavior comes to light, the same arguments are repeated over and over again: Why did the women wait so long to report it? Why did they take money and sign nondisclosure agreements? Why did they keep working at the company? Why did they accept roles? Why did they stay friends with him? Why didn’t they kidnap Harvey and lock him in an S&M harness like the ladies in 9 to 5? I don’t know. Maybe they decided they wanted to keep working, keep supporting themselves, keep doing the thing they loved. Maybe they were ambitious and angry, and, yeah, maybe they wanted some money for having to deal with all of it. This kind of thing doesn’t only happen to heroes. It happens to normal women — women who are cowards, ambitious jerks, talented artists, lonely girls, girls who put out, girls who don’t, girls who don’t like being called “girls,” wonderful and complicated and still-forming creatures who are forced to make impossible choices that follow them forever. Life isn’t a Miramax movie. Life is a mess. Yes, I am a coward, but let’s be clear: The man in the hotel room is to blame.


quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Suicídio do reitor ou da universidade livre?, por Roberto Romano


Suicídio do reitor ou da universidade livre?
Por Roberto Romano


As  universidades públicas brasileiras foram tomadas de estupor com o suicídio cometido pelo Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo, reitor da UFSC.  A tragédia evidencia problemas éticos, científicos e políticos que marcam os tratos entre poder e conhecimento em nossa terra. O primeiro traço a chamar nossa memória encontra-se em algo que desagrega toda sociedade, em especial a reunida nos campi. Trata-se da abjeta delação que volta a ser empregada como instrumento repressivo por agentes do Estado, em setores midiáticos e na própria universidade. No caso em pauta, o estopim da crise reside numa delação contra o reitor. O dirigente foi preso e submetido ao escárnio público sem os mínimos requisitos de justiça, como o direito de ser ouvido antes de encarcerado.  Os repressores e seus aliados da imprensa não se preocuparam um só instante com a sua honra e a dignidade do cargo por ele ocupado. Ele foi exposto à execração popular sem nenhuma prudência. Em país onde ocorrem a cada instante casos como o da Escola Base, os linchamentos reiteram a barbárie.
Todos os pesquisadores e docentes que pensam e agem com prudência, recordam os procedimentos impostos à academia após o golpe de 1964. As cassações de funcionários, lentes, estudantes, anunciaram a posterior tortura, morte e aniquilação dos direitos. Delatores surgiram como cogumelos nas escolas de ensino superior, com os dedos em riste contra adversários ideológicos ou concorrentes bem sucedidos aos cargos, pesquisadores com maior notoriedade junto aos poderes públicos, à comunidade universitária mundial, ao público. O Livro Negro da USP traz relatos nauseantes de prática acusatória e anônima, na qual as baixezas emulavam a covardia. Quem foi delatado perdia tudo e foi tangido rumo às prisões ou exílio. O indigitado, não raro, era posto na “cadeira do dragão” e outros tormentos, após seguir o caminho de orgãos como o Dops em veículos oficiais, cedidos por dirigentes universitários ao aparato policial.
De certo modo o Brasil, na ditadura e na aparente democracia atual,  retoma a proeza que tornou infame parte da antiga democracia grega. Nela existiu uma lei, tida como exemplo de injustiça, que punia os “atimoi”.  Ao surgir um indivíduo com força para vencer eleições, os seus inimigos o acusavam de desvios comportamentais (por exemplo, de ter mantido relações eróticas com adultos, pagas por presentes). O candidato era destituído dos direitos cidadãos, condenado sem julgamento e passava a ser vítima dos piores abusos coletivos. Os processos registram em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinha a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a acusação, que trazia desconfiança, para definir a pena. Daí a tese de juristas nossos contemporâneos segundo a qual aquelas pessoas seriam na verdade apenados sem ter sido declarada sua culpa. Douglas M. MacDowell: (The Law in Classical Athens, Cornell Un. Press, 1978) diz que os acusados de prostituição deviam “evitar o exercício dos direitos de cidadania, ao serem tidos como “atimoi”, pois eles seriam processados se ignorassem tal veto”. A pena era a morte. Na dokimasia, exame para ingresso e saída dos cargos públicos, é assumido que “a atimia (perda dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os cidadãos privados”, segundo S.C. Todd (The Shape of Athenian LawOxford, Un. Press, 1993). Este “só” não tranquiliza, porque o grego é animal político. As penas de atimiatambém eram aplicadas aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam os seus débitos aos tribunais e à Assembleia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia. A honra e a desonra de um político eram entregues aos delatores, interessados na sua expulsão da cena pública.
Na ditadura de 1964, os acusados eram tidos, ipso facto, como “sem honra”, visto que tinham sido denunciados por “cidadãos honestos”. Recordo o exemplo edificante de um indivíduo conservador, mas honesto, naqueles dias de bacanal acusatória. O bispo de Marília, Dom Hugo Bressane de Araújo, erudito especialista em Machado de Assis e pessoa facilmente ajustável “à direita”, ao receber delatores que erguiam o dedo contra “comunistas” e “corruptos” pedia o seguinte: “o senhor (senhora) vá ao Cartório, escreva a sua denúncia, reconheça a firma e me envie, para que eu a estude”. Desapareceram os acusadores anônimos da Cúria. Mas nem sempre autoridades religiosas e políticas, sobretudo as policiais, mantiveram tal retidão ética. E mesmo após o regime autoritário, a prática hedionda dos sicofantas se manteve. Ao ser reiterada em todos os ambientes, ela se transformou em ética cujo automatismo gera boa consciência nos desonestos. Afinal, imaginam, eles fazem tudo pelo bem do país ao denunciar, sem provas e sem fundamentos, os seus concorrentes, pares, adversários políticos ou ideológicos. Nos processos judiciais, a “delação premiada” corrói impedimentos éticos. Para garantir a diminuição de penas, a língua do prisioneiro articula frases cujo conteúdo, não raro, avança inverdades e calúnias.  Quase todas a eles ditadas pelos proprietários do poder.
Quando alguns procuradores da República, falando em nome de milhões mas sem mandato para tal múnus, apresentaram ao país as “Dez Medidas contra a Corrupção”, fui chamado para a Comissão Especial da Câmara que analisava o projeto de lei resultante. Ali critiquei o uso dos delatores pagos – seu lucro, segundo o texto das Dez Medidas, seria de 5% sobre o butim amealhado – e recordei os sicofantas atenienses, genitores de todos os que delatam desde então. Ademais, indiquei o quanto era nociva a “sugestão” de armar processos a partir de provas ilícitas, mas elaboradas “de boa fé” (conferir o site oficial da Câmara dos Deputados: “Especialistas apontam falhas em medidas de combate à corrupção sugeridas pelo MP”, 22/08/2016).
Além do vício ético reunido no vocábulo “delator”, usado e abusado para perseguir quem pensa de modo diferente ao costumeiro, com prisões espetaculares e reportagens idem, precisamos examinar a prática política no interior dos campi. A Universidade Federal de Santa Catarina, a mesma do reitor falecido, tem uma história melancólica a ser exposta. Antes de indicar o caso concreto, uma premissa ética essencial. Se um reitor é alheio ao saber e ao ensino, e age tendo em vista os ditames do poder de Estado, ele representa apenas aquele poder no campus. Se traz para o interior da instituição universitária os interesses dos comprometidos de modo imediato com o poder (oligarquias, mercado, forças religiosas ou econômicas), ele é nocivo à universidade, pois na companhia daqueles interesses chegam a intolerância, ódio, falta de respeito aos outros, fanatismo.
Na Universidade Federal de Santa Catarina, existiu durante longo tempo o vezo indicado acima. Tal procedimento trouxe para a instituição os mesquinhos interesses políticos do Estado federal, estadual, municipal. A rivalidade interna foi acrescida pelas técnicas empregadas para manter o controle da reitoria. Até data recente, nas eleições reitorais da UFSC, “todos os nomes sufragados pelas urnas pertenciam às forças políticas que vinham dirigindo a UFSC desde a sua criação e que mantinham com os governos militares uma convivência pacífica ou um apoio entusiasta (...) O processo eleitoral não possibilitou, portanto, como esperavam ou aspiravam as forças de oposição ao regime militar, neste caso as organizações dos docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes, que grupos políticos não alinhados com as elites locais e nacionais pudessem ocupar os mais altos cargos da universidade” (Pedro Antonio Vieira, A armadilha das urnas: 20 anos de Eleições Diretas e de Continuísmo na UFSC, in Waldir José Rampinell (ed.): O preço do Voto. Os Bastidores de uma eleição para reitor. Florianópolis, Ed. insular, 2008).
O costume viciado das delações, jungido aos interesses múltiplos presentes no campus, ajuda a compreender a morte do reitor. É tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para a recusa das acusações sumárias, sem direito de defesa. É preciso, em nome da correta ética, impedir os delatores anônimos. Se tal coisa não for efetivada, logo voltaremos aos anos 60 ditatoriais, quando os sicofantas eram acarinhados pelo regime político, assumiam cargos que não mereciam, destruíam os vínculos de confiança e companheirismo que devem imperar na vida intelectual. Se os delatores não forem detidos e se continua a subserviência acadêmica aos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário e Mercado –  logo todos os que não curvarem a cerviz aos inquisidores serão postos entre os “atimoi”. A morte do reitor é um aviso sinistro. Saibamos aproveitá-lo.


segunda-feira, 2 de outubro de 2017

APROPRIAÇÃO CULTURAL É UMA EXPRESSÃO AMARGA DE PESSOAS PERDIDAS


Muito se tem discutido acerca do que deva ser compreendido como "apropriação cultural". Algumas discussões, no entanto, resvalam em discursos vazios que em nada contribuem para o empoderamento desse ou daquele grupo, dessa ou daquela cultura. Contudo, os debates precisam continuar acontecendo para que possamos, cada vez mais, abrir os olhos e vermos o que sempre esteve ali, tão perto: o outro.
Nesse sentido, o texto de Emir Ruivo, que reproduzimos aqui, contribui bastante para essa discussão. O link para a postagem original é:
Texto de Emir Ruivo
25/08/2017
Boa leitura!
A discussão sobre a “apropriação cultural” voltou à tona esta semana por conta dos vazamentos de imagens de Anitta com tranças nas filmagens do seu próximo video-clipe. Aparentemente, defende um grupo, ela não pode usar trança pois é uma referência da cultura africana e ela não é negra.
Anitta sempre me pareceu ter algum descendente negro, embora tenha se “esbranquiçado” com os anos. Não admiro, pessoalmente, essa avidez pela cirurgia plástica, muito menos pela busca da padronização da beleza. Mas sei que está fora da minha alçada qualquer coisa além de dar esta opinião.
De qualquer forma, as raízes étnicas da cantora são irrelevantes. Minha discussão está no que significa “apropriação cultural” e no cerne do que é cultura e propriedade.
Já de imediato, o conceito de “apropriação cultural” me parece uma cobra que se come pelo rabo posto que para haver apropriação, é preciso que haja um proprietário. Apropriar-se de algo é roubar, e você só rouba algo que tem um dono. Só que cultura não tem dono.
Cultura é, segundo a definição antropológica, o conjunto de conhecimentos, éticas, crenças, artes, moral, leis e costumes de uma sociedade. Se tem um dono (e esse dono pode até ser um grupo), você exclui quem não é dono. Excluir alguém do direito a uma cultura é excluir alguém de uma sociedade. Quer dizer, é o oposto da lógica inclusiva da qual nós deveríamos estar nos ocupando.
Mesmo que seja uma sociedade da qual o coleguinha não faça parte, a sociedade tem o dever humanitário de se abrir para quem se interessa por ela. Imaginar que, por exemplo, uma pessoa branca, oriental ou negra deve ser impedida de usar vestes indígenas é o mesmo que imaginar que um índio deve ser impedido de usar roupas. E o mesmo se aplica a Anitta. E o mesmo se aplica ao caso célebre da menina branca que foi massacrada por usar turbante.
Se formos levar isso a cabo, não vamos mais comer pizza, pois é dos italianos. E os italianos não vão comer macarrão, pois é criação chinesa. Não vamos mais jogar futebol, que é dos ingleses, e os ingleses também vão ter que desaparecer com os Beatles e os Rolling Stones, afinal o rock é criação americana. Ninguém, exceto punks, vão usar camisetas dos Ramones. Inclusive nem a maioria dos Ramones. O que não é um problema pois não existiria o rock, que vem do blues. E nem o blues, que originalmente usava violão, um instrumento espanhol.
Resumindo a história, teríamos que reinventar a roda toda vez que fôssemos fazer qualquer coisa, pois a roda é da cultura mesopotâmica.
Mas é claro que estamos pensando em exemplos extremos. O conceito de “apropriação cultural” sério, não o dos loucos, não diz isso. Ele fala, por exemplo, do uso comercial das referências culturais sem valorizar o povo. Me parece uma acepção admissível numa primeira leitura, mas amarga e até ilógica quando penso mais a fundo.
O interesse por uma cultura é, necessariamente, a valorização de um povo. A cultura é sua expressão. Se você gosta dela, como pode não gostar do povo? É como dizer “o Machado de Assis é um gênio, mas seus livros são péssimos”. Assim, quando alguém usa referências culturais, mesmo que para fins comerciais, essa pessoa está, necessariamente, valorizando o povo. (À exceção se o interesse for financeiro, mas isso é assunto para outro texto).
O conceito sério também menciona o uso da iconografia de um povo sem compreensão dos conceitos. Também me soa amargo e intolerante pois continua presumindo maniqueisticamente um proprietário que controla o significado.
Pense no exemplo da cruz. É um ícone cristão. Mas os cristãos têm exclusividade sobre ela? Ela não pode significar outra coisa para mim? O próprio Jesus de Nazaré foi crucificado junto a outras dezenas de pessoas. Porque o símbolo é dele? Ou melhor, dele não – das pessoas que usam sua figura para pregar convicções pessoais (tenho para mim que Jesus, homem simples que pregava à beira de um rio, jamais diria que um símbolo tem qualquer valor, mas isso é questão para outro momento).
Eu tenho uma moeda com a imagem de Jesus talhada. Sou ateu, mas a moeda era do meu avô. Não a guardo por causa de Jesus, mas por causa de meu avô. É meu ícone pessoal. Será que eu não posso tê-lo por não ser cristão?
Proponho um exercício para que fique mais claro o que digo: imagine dois povos num tempo em que não há comunicação. Eles habitam locais diferentes e não se conhecem. Um símbolo simples – um círculo, digamos – significa coisas opostas para ambos.
Em certo momento da história, esses povos se encontram. Agora, pergunto: qual deles, exceto pela imposição via força bruta, tem direito de determinar o que, afinal, vai significar o tal círculo? Não é mais simples que cada um veja o símbolo como o que bem entende?
Quem pode dizer que é dono de um ícone, o guardião sagrado inquestionável do sentido de um símbolo? Alguém aí disse que é essa a pessoa que está cometendo apropriação cultural? Por que para mim quem se apropria de uma cultura é quem se sente no direito de determinar seu uso. Este, sim, rouba do todo para beneficiar um grupo. A cultura é de todos e nosso maior desafio é a inclusão de todos em todas as culturas. Jamais o oposto.