Grande parte da sociedade brasileira tem, por inúmeras razões, demonstrado certa apatia em relação aos destinos políticos do país. Isso se dá, pois, muitas vezes eu, você, nós, não nos preocupamos com o que acontece para além dos nossos quintais; como resultado, quase sempre, da mais completa sensação de impotência que se abate sobre o cidadão, quando este percebe que seus representantes políticos não mais os representam, ou quando sente diretamente no bolso os efeitos das crises políticas e econômicas; crises estas cujos efeitos mais fortes recaem sempre sobre os mais fracos, os mais pobres.
Como se isso não bastasse, tem-se no Brasil do século XXI, uma verdadeira guerra de informações, em sua maioria distorcidas, que têm como único objetivo fomentar a ideia do “quanto pior melhor”. Assim sendo, se instala um grande cansaço, e corremos o seríssimo risco de acreditar que estamos nos informando através de áudios toscos, vídeos ridículos ou daquela infinidade de memes medonhos que recebemos e enviamos todos os dias através dos nossos dispositivos. Dessa forma, chegamos a um estágio, que acreditamos piamente que estamos sendo muito bem informados. Ledo engano!
E no contexto desse caldeirão de informações, acabam por se inserir ideologias que objetivam atender a esse ou aquele grupo de interesses. Sim, pois não sejamos ingênuos de acreditar que exista qualquer tipo de neutralidade em relação àquilo que é veiculado diariamente nos variados canais de mídia.
E é a partir dessa constatação de não-neutralidade, que apresentamos aqui algumas considerações sobre o projeto da “Escola Sem Partido”. Ora, se não existe neutralidade e tudo o que ocorre na sociedade tem caráter ideológico, deduzimos então que não existe, nem nunca existirá uma “escola sem partido”. Isso é óbvio. Não é crime, no entanto, que alguém decida propor um Projeto de Lei chamado de “Escola Sem Partido”. O que não pode, contudo, é forçar a aprovação de um projeto nesses moldes, sem que se tenha uma ampla discussão com a comunidade educativa.
Quando decisões que interessam diretamente a sociedade são tomadas sem que se dê a mais ampla discussão a respeito, a sociedade só tem a perder. No que diz respeito ao projeto "Escola Sem Partido" não pode ser diferente. Assim sendo, para um início de conversa, vejamos o que nos diz o dicionário Aurélio, na sua versão de 2010, quando buscamos os verbetes "escola" e "partido".
ESCOLAs.f. 1. Estabelecimento público ou privado onde se ministra, sistematicamente, ensino coletivo. 2. Sistema de ensino baseado em teorias educacionais. 3. Espaço destinado à educação sistematizada em todos os níveis e modalidades, composta por professores alunos e comunidade escolar.
PARTIDOs.m. 1. Organização cujos membros programam e realizam uma ação com fins políticos e sociais; facção. 2. Associação de pessoas unidas pelos mesmos interesses, ideais, objetivos. 3. Posição, lado, parte.
Percebe-se que há algumas intersecções entre os significados das palavras “escola” e “partido”, ou seja, são palavras as quais os sentidos se complementam, uma vez que toda e qualquer forma de ensino ou de escola é baseada em uma determinada “posição”, com o objetivo de se alcançar determinados interesses. Assim, toda educação que se pretenda comprometida com o crescimento humano precisa ser pautada pela diversidade de ideias.Caso contrário, ela estará seriamente comprometida.
Nesse sentido, Gilberto Freyre (1900 - 1987) já nos alertava, em 1933, quando da publicação do clássico Casa-Grande & Senzala. Para ele, a principal característica do povo brasileiro era exatamente a diversidade. Logo, a nosso ver nenhuma escola, no Brasil, pode ser chamada de escola se não preparar seus educandos para os desafios político-sócio-culturais do século XXI, levando em consideração a heterogeneidade humana, a multiplicidade de ideias, posicionamentos e opiniões diferentes e divergentes.
O “saber” é o material de trabalho da escola. No dia a dia, no ambiente escolar, por meio do diálogo, o saber é transformado e ressignificado. E uma das principais funções da escola é mostrar caminhos para que o educando se torne um ser discursivo. E o que significa “ser discursivo”? É ser capaz de se assumir como sujeito da sua própria história, sendo capaz de intervir e transformar a sociedade na qual está inserido. Dessa forma, se esse é objetivo primordial da escola, logo se vê que se distancia completamente de qualquer forma de padronização, engessamento e limitação cultural, pois é exatamente na escola, que o aluno deve ser estimulado a “supor”, “imaginar”, “deduzir”, “pensar”, “criar”, “questionar” e “transgredir”.
O problema é que, para algumas pessoas, verbos como “pensar” e “transgredir” são ameaçadores, podendo ser considerados, inclusive, muito perigosos. Logo, para alguns é necessário que todos pensem de maneira padronizada. Pessoas que pensam e transgridem, elegem quem elas querem, destituem quem elas querem, não aceitam a opressão e suspeitam daqueles que estão sempre cheios de boas intenções, principalmente no trato com o dinheiro público. Pessoas que pensam e questionam também não aceitam apenas uma versão dos fatos. Pessoas que questionam e transgridem recusam qualquer forma de imposição de uma história ou de um pensamento único, uma vez que o pensamento é múltiplo e as histórias são diversas.
Assim sendo, uma educação comprometida com o futuro, nos moldes da educação dos países desenvolvidos, não pode se pautar por posicionamentos que limitem a aprendizagem dos seus educandos. A educação e, consequentemente a escola, só tem sentido de existir enquanto se assumir como veículo que proporcione a transformação dos seus cidadãos, capazes de criar, desafiar e transformar paradigmas estabelecidos. A verdadeira educação se dá por meio de é um processo de aprendizagem que começa com o confronto entre a realidade do que o aluno sabe e o novo que descobre, o que o leva a perceber novas formas de encarar a realidade. Outra função da escola consiste ainda em contribuir para que o aluno descubra, ajudado por seus colegas e educadores, novas maneiras de perceber coisas que antes não percebia, tendo em vista ser sempre necessário olhar de maneira nova aquilo que sempre foi percebido da mesma forma, pelo mesmo ângulo. E isso, dependendo do que se queira para uma nação pode ser bastante perigoso.
Contudo, se insistirmos em “propostas” mesquinhas que objetivam limitar as funções da escola, pelo viés medíocre da censura, condenaremos gerações e gerações de jovens à ignorância e, longe de qualquer mundo desenvolvido, no máximo desembocaremos em realidades como aquelas vistas hoje em alguns dos nossos países vizinhos ou, mais distante, em países como a Somália ou o Sudão; ou seja, agir assim é contribuir para que o Brasil se afaste das grandes centros econômico-culturais e se afunde cada vez mais nesse abismo de estupidez e ódio que temos visto se alagar a cada novo dia.
Nos chama a atenção que propostas como essa da “Escola Sem Partido” sejam comumente apresentadas como “salvadoras da pátria”, por pessoas que, na maioria das vezes, nunca puseram os pés em uma escola pública. Não conhecem e não têm interesse em conhecer a realidade daqueles pais, professores e alunos; mas se acham no direito de apresentar propostas para mudar exatamente aquilo que não conhecem. Ora, você só pode tirar a goteira de um telhado se você souber onde pinga em dias de chuva. Caso contrário, você vai fazer a coisa errada e, na próxima chuva, além daquela goteira, aparecerão inúmeras outras.
Queremos dizer com isso, que qualquer decisão que implique em mudanças na educação brasileira só podem ser implementadas após longas discussões com a sociedade. Quando isso não ocorre, é necessário estarmos atentos, pois, como diria aquele velho escritor, pode haver "algo de podre no reino da Dinamarca”.
E aqui colocamos uma primeira questão: em pleno século XXI, a quem interessa empurrar a escola brasileira rumo ao obscurantismo?
Agora, vamos dar uma olhada no que está por trás do projeto “Escola Sem Partido”. Primeiro, quando você cria um projeto e o denomina de “Escola Sem Partido”, o leitor médio é automaticamente levado a entender “partido”, como “partido político” e não como “escola sem comprometimento político”, o que, como já vimos, não faz o menor sentido. A escola, toda e qualquer escola, é um espaço naturalmente político, no sentido mais amplo da palavra “político”. Não existe escola neutra. Não existe escola apolítica. E você, caro leitor, pode perguntar: “por quê? E eu respondo: Porque a escola é feita de gente, e não existe ninguém neutro. Não existe ninguém apolítico. Nem pai, nem professor, nem aluno, nem ninguém. Então, o título “Escola Sem Partido” já se mostra equivocado e tendencioso.
O movimento “Escola Sem Partido” foi criado pelo advogado Miguel Nagib, em 2004. Em 2014, um deputado estadual do Rio de Janeiro, do Partido Social Cristão - PSC, pediu que o referido advogado escrevesse um projeto de lei com esse teor. Na época, o projeto foi batizado de “Programa Escola Sem Partido”. O referido deputado foi, então, o primeiro a apresentar um projeto nesses moldes, no Rio de Janeiro, no dia 13/05/2014.
Também no Rio de Janeiro, foi apresentado um segundo projeto. Dessa vez, por vereador também do Partido Social Cristão - PSC. Na sequência, outros projetos foram apresentados Brasil afora, sendo alguns aprovados e postos em prática, como em Alagoas, por exemplo, onde recebeu o nome de “Escola Livre”. E aqui, reside outra contradição. Como pode ser “escola livre” se a liberdade de expressão é proibida?
Entre os projetos apresentados Brasil afora, os mais divulgados, por seu caráter nacional, já estão tramitando no Congresso Nacional. Na Câmara dos Deputados, encontra-se o PL 867/2015, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF); no Senado Federal, o PL 193/2016, é de autoria do senador Magno Malta(PR-ES).
O deputado Izalci Lucas é empresário da área de educação, enquanto o senador Magno Malta é pastor evangélico. As demais informações sobre os dois parlamentares podem ser encontradas na Internet; por isso não teceremos comentários nesse sentido. No entanto, é preciso observar que a defesa de um projeto que pode ter forte impacto sobre a educação pública brasileira não poderia ser encampado por alguém que defende a educação privada, no caso do nobre deputado. No caso do senador Malta, há um conflito ideológico claro. Se o Estado brasileiro é, conforme a Constituição Federal, laico, ou seja, Estado e Igreja são separados, fica complicado que um político evangélico apresente um projeto em defesa de uma escola dita "sem partido”. Só ai já reside uma imensa contradição em relação ao projeto “Escola Sem Partido”. Destarte, já na sua proposição, identifica-se, no mínimo, um choque de interesses; o que por si só já invalidaria tal proposta.
Um projeto como esse precisa estar muito bem alicerçado teoricamente. Contudo, não é o caso do projeto “Escola Sem Partido”. Ao se visitar o site do projeto, observa-se que este se ancora, acredite, nos chamados "guias politicamente incorretos" publicados recentemente no Brasil. Além deles, também é tomado como base teórica o livro Professor não é educador, de Armindo Moreira.
Ao tomarmos o que defende o professor Nogueira, no título e conteúdo do seu trabalho, não se tem nada de novo. Explicamos: por muito tempo usamos indiscriminadamente as palavras professor e educador para as mesmas situações. Para alguns estudiosos, isso nada mais é do que uma questão de semântica. Para outros, no entanto, um professor realmente não é um educador. Enquanto um professor pode ser apenas um “dador de aula”, “um repassador de conteúdo”; um educador vai além, uma vez que se espera dele uma visão ampla daquilo que deva se compreender por aprendizagem, objetivando a formação ampla do educando. Em outras palavras, ser professor é fácil. O que não é fácil é ser educador. E é aí que está o cerne do que defende o movimento “Escola Sem Partido”. Baseado naquilo que propõe o professor Armindo Nogueira, o projeto “Escola Sem Partido” defende coisas como:
1. Professor não é educador;
2. Educar e instruir são coisas diferentes;
3. Educação é de responsabilidade somente da família e da igreja;
4. Instrução é de responsabilidade da escola;
5. Os professores sejam limitados a instruir e transmitir conhecimento;
6. Não exista “doutrinação” na escola;
7. Quando o professor “fugir” do conteúdo deva ser denunciado à direção da escola;
8. Denunciado, o “professor doutrinador” deverá ser processado pelo MP.
Ao olharmos de pertinho o projeto “Escola Sem Partido”, percebemos que ele atenta contra aquilo que está estabelecido na Constituição Federal, quando esta afirma que “um dos objetivos da educação nacional é preparar para o exercício da cidadania, o que é reforçado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB. Convém ressaltarmos que a Constituição Federal não se refere a “instrução”, mas à educação.
E daqui, do nosso modesto ponto de vista, fica muito difícil acreditar que, de repente, essas pessoas ficaram realmente preocupadas com qualquer forma de mudança na escola brasileira; especificamente mudanças que objetivam melhorias na formação das pessoas mais carentes, que frequentam a escola pública nacional.
O projeto “Escola Sem Partido” pode ser compreendido, na verdade, como um movimento que deseja impor o silêncio na escola brasileira, impedindo que se discutam as razões das desigualdades sociais que assolam essa terra desde sempre. É uma maneira de amordaçar os mais pobres, impedindo que tenham consciência da situação do seu país e, consequentemente, da sua própria situação. Ao contrário do que defende, a “Escola Sem Partido” tem partido, sim, mas não é o partido dos mais carentes. Ou somos tão ingênuos de acreditar que determinadas igrejas, empresas de comunicação e institutos de ricaços, são neutras e apartidárias?
Como dissemos até aqui,não existe educação sem o exercício da liberdade. Logo, toda e qualquer tentativa de impedir que o diálogo se estabeleça dentro de uma sala de aula é uma tentativa de violação dos direitos da pessoa humana. Além disso, o que o projeto “Escola Sem Partido” defende, não serve para quem é rico e bem-nascido, ou você acha que esses senhores querem que seus filhos e netos frequentem a escola, sem aprender a pensar e questionar? Se fosse assim, quem iria administrar suas empresas? Se assim o fosse, as escolas bilingues, bem como aquelas que formam governantes, as quais não são frequentadas por pobres, diga-se de passagem, estariam fechadas. Então, a quem será que se destina essa escola alienada, sem partido?
Não é preciso ir muito longe para se perceber que a “Escola Sem Partido” é uma violenta tentativa de manter os pobres na eterna pobreza. Ser pobre e sabedor dos seus direitos não é o tipo de gente que interessa para determinados patrões/governos. Para eles, o que serve é ser pobre , ignorante, e subserviente; sempre “andando de lado e olhando pro chão”.
No bojo dessas questões, não se pode esquecer que a "escola sem partido" pode implicar, naturalmente, em uma escola sem professores. Os educadores brasileiros recebem um salário de miséria para exercer uma das profissões mais desgastantes entre todas, perdendo apenas para os policiais. Em muitos casos, as escolas são ambientes degradantes, não oferecendo as mínimas condições de trabalho; isso sem falar naqueles profissionais que estão afastados, vítimas de depressão, da síndrome de burnout ou síndrome do pânico, por exemplo. Você acha mesmo, atento leitor, que além de tudo isso esses mestres aceitarão ser censurados e tolhidos em um dos seus mais elementares direitos, a liberdade de expressão? Já há um enorme deficit de professores no Brasil, números que aumentam assustadoramente. Infelizmente, por razões mais que óbvias, poucos ainda insistem na profissão. Muito em breve faltarão professores no mercado de trabalho. Ganhar pouco, trabalhar muito e adoecer, por incrível que pareça, ainda se aceita. Mas, além de tudo isso correr o risco de ser processado por estar exercendo o que é natural da profissão, me parece que já extrapola todos os limites do aceitável.
Assim sendo, se o projeto “Escola Sem Partido” se tornar lei, alguns autores, obras e ideias jamais poderão ser mencionados, mostrados ou ouvidos em sala de aula. Novidade? Não. Já vimos isso acontecer na história desse país e demorou pelo menos vinte anos para conseguirmos colocar a cabeça pra fora do lamaçal no qual afundaram o Brasil. Muitos dos agentes daquele período ainda estão por aí, travestidos de herois. O Brasil, no entanto, não carece de herois ou mitos, mas de respeito e dignidade; elementos estes que são cultivados e colhidos em ambientes propícios de democracia, liberdade e diálogo, como a escola. O jogo está sendo jogado. Quem paga pra ver?