domingo, 14 de junho de 2020

Cântico negro - José Régio



Cântico negro
José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!




José Régio
pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

domingo, 7 de junho de 2020

Como o Brasil deu no que deu



No momento em que escrevo, o número de mortos por Covid-19 já passa dos 35 mil. A República mal se sustenta em pé e a democracia é atacada por pessoas de quase todos os lados, inclusive por aquelas que juraram defendê-la. À noite, dezenas de fascistas, munidos de tochas, num arremedo de Ku Klux Klan tupiniquim (aqui, criamos a figura do supremacista pardo), marcham em direção ao Supremo Tribunal Federal, numa tentativa torpe e criminosa de emparedar seus ministros. São mais de 35 mil mortos. O presidente da República, eleito democraticamente, anda a cavalo e saúda manifestações antidemocráticas. O racismo estrutural e a perversidade da elite brasileira empurraram um menino negro de cinco anos de idade do nono andar de um prédio de luxo para a morte. Depois de pagar R$ 20.000 pela morte que causou, a madame pôde voltar para casa e terminar de fazer as unhas. São mais de 35 mil mortes e, pressionados pela força do poder econômico, prefeitos e governadores autorizam a abertura daquilo que, na verdade, nunca esteve fechado, o mercado. Seguimos abrindo covas. O governo nega transparência aos dados que nos dizem o número de mortos. O Brasil segue à deriva. Golpistas e reacionários formam uma “frente ampla” para combater o fascismo que eles mesmos ajudaram a chegar ao poder, perseguindo e criminalizando líderes e partidos de esquerda. A ideia não é derrotar o fascismo de coturno, mas substituí-lo por um fascismo de sapatênis. O perfil do presidente no Twitter registra uma frase de Mussolini. Nada mais é feito às sombras. “Os idiotas perderam a modéstia”.

E muita gente se pergunta como chegamos até aqui, como o Brasil deu no que deu. As tentativas de resposta para tais questionamentos são muitas e intensas, que nem caberiam nesta pobre e limitada crônica. O que sabemos desde sempre é que a desconstrução desse país, de suas instituições, educação, cultura e saúde faz parte de um projeto de longo tempo, que tem por objetivo privilegiar a elite financeira (a classe média acha que faz parte desse projeto), mantendo a população pobre como eterna escravizada, sem acesso aos bens e serviços mais básicos, que é aquilo que se espera de nações verdadeiramente democráticas, por isso mesmo submetida aos ditames e perversidades da classe rica, branca e poderosa. Na contramão do que se vê no mundo, o vice-presidente brasileiro ousa afirmar que não há racismo no Brasil. Se em vez de gastar R$ 44.000 em uma esteira o senhor vice-presidente investisse o dinheiro público em livros e em bons canais de informação, não nos indignaria tanto. Mas como sabemos, isso não é preocupação da casa-grande.

A frase que dá título ao presente texto é parte de um título maior, de um ensaio do professor Darcy Ribeiro (1922-1997). O ensaio do referido antropólogo chama-se Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu, de 1985. Assim como Darcy Ribeiro, inúmeros outros autores tentaram (e ainda tentam) explicar como o Brasil deu no que deu, explorando as perseguições políticas, os preconceitos, os genocídios, os golpes etc.

A seguir, listamos algumas obras que são, a nosso ver, indispensáveis para a compreensão de um Brasil que se transmuta, mas na sua essência muda muito pouco. A lista dessas obras, no entanto, não segue nenhum rigor metodológico ou cronológico. É apenas uma lista posta como sugestão de leitura, sem nenhuma outra preocupação.

  1. Os Sertões, de Euclides da Cunha
  2. Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre
  3. Os Donos do Poder – Formação do patronato político brasileiro, de Raymundo Faoro
  4. Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda
  5. Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior
  6. Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado
  7. Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido
  8. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado
  9. Carnavais, Malandros e Herois: para uma sociologia do dilema brasileiro, de Roberto DaMatta
  10. O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro
  11. Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro
  12. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho
  13. Dialética da Colonização, de Alfredo Bosi
  14. Devassos no paraíso- a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade, de João Silvério dos Trevisan
  15. O negro no Brasil, de Júlio José Chiavenato
  16. O genocídio do negro no Brasil: processo de um racismo mascarado, de Abdias Nascimento
  17. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), de Manolo Florentino
  18. Significado do protesto negro, de Florestan Fernandes.
  19. Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro.
  20. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior
  21. Brasil: uma biografia, de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling
  22. A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato, de Jessé Souza
  23. Subcidadania Brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro, de Jessé Souza
  24. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, de Milton Santos
  25. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI, de Milton Santos e Maria Laura Silveira
  26. Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire
  27. Made in Macaíba, de Miguel Nicolelis


               Boa leitura!