terça-feira, 28 de abril de 2020

Quem não respeita seus mortos, não respeita nada



Por Rosa Montero

Sempre fui fascinada pelos vários ritos funerários que o ser humano criou ao longo da história. A morte é algo tão grande e tão incontrolável, sobretudo para nós que ficamos aqui e temos que lidar com o inaudito desaparecimento de um ente querido, que somos forçados a buscar truques defensivos. E, como a morte não se deixa domesticar por meio de palavras (a verdadeira dor nos emudece), recorremos às cerimônias coletivas para encontrar consolo.

Barcos flamejantes que adentram o mar para os vikings, pirâmides e mumificações para os egípcios, cremações sagradas para os budistas, cemitérios tão monumentais que acabam sendo verdadeiras cidades da morte. E, então, as manias peculiares de cada cultura: os muçulmanos devem ser enterrados sem caixão, de lado e olhando para Meca; Os aborígines da Austrália colocam o corpo em uma plataforma, cobrem-no com folhas e o deixam apodrecer ao ar livre; no vilarejo de Sagada, nas Filipinas, os caixões são pendurados nos penhascos, porque assim ficam bem perto do céu (que lindo); e os pársis de Mumbai usam as impressionantes Torres do Silêncio, construções de pedra onde os cadáveres são depositados para que os urubus os devorem, o que, pensando bem, possui uma beleza selvagem e ecológica.


Sim, temos que fazer algo com a morte, temos que aprisioná-la com ritos precisamente para salvar a vida. É por isso que desde sempre uma das medidas mais claras da devastação causada por uma catástrofe é o fato de nos roubar essa liturgia final. Acontece nas guerras, com os mortos desaparecidos em combate; acontece nas explosões que evaporam corpos, como os acidentes de avião ou as das Torres Gêmeas. E acontece nas pandemias. Quando os cronistas das várias pestes sofridas pela humanidade queriam destacar o horror supremo do que estavam vivendo, falavam disso: dos milhares de mortos sem enterrar porque "aqueles que cavavam já não davam conta", como dizia Procópio de Cesareia na peste de 541; ou o que escreveu durante a Grande Peste de 1348 Agnolo di Tura, um morador de Siena, onde metade da população havia morrido: “Enterrei com minhas próprias mãos cinco filhos em uma única sepultura. Não houve sinos. Nem lágrimas. Isto é o fim do mundo”. Não, não houve sinos, não houve ritual, não houve uma despedida apropriada e, portanto, não houve salvação.

E isto é o mais duro, o mais devastador que está acontecendo agora com o coronavírus. Todas essas mortes, todas elas sem o consolo do velório e muitas, além disso, sem a mera possibilidade de lhes terem dito adeus. E todos esses parentes trancados na solidão de suas casas, necessitados de lágrimas amigas para molhar seus ombros e contemplando como seus mortos se convertem em um simples número no meio de uma lista. Temos que fazer algo com essa dor enorme. E isso tem que ser feito já. Quando a situação melhorar, assim que pudermos nos permitir, é preciso organizar funerais de Estado e cerimônias coletivas como os três minutos de silêncio que fizeram na China. Mas, enquanto esse momento não chega, podemos honrar os mortos de alguma maneira, fazer pequenos gestos. Pois, então, por que não colocar, por exemplo, um pequeno laço preto em nossas sacadas? Seria solidário compartilhar a dor de nossos vizinhos. E também, é claro, a esperança. Quando este artigo sair, 15 dias depois de escrevê-lo, pode ser que haja alguma iniciativa desse tipo.

Já dizia a Ilíada, esse livro de quase 3.000 anos que hoje continua a nos falar com eloquência. Quando Aquiles, envenenado pela raiva, mata em combate o nobre príncipe Héctor, comete assim a maior e mais inconcebível das iniquidades: amarra o cadáver pelos tornozelos a seu carro de guerra e a arrasta e o mantém à intempérie durante 12 dias. Uma noite, o velho rei Príamo, disfarçado, tem que ir ao seu acampamento e suplicar de joelhos ao feroz Aquiles para que lhe devolva o cadáver do filho (o que ele consegue, aliás). A Ilíada é cheia de brutalidades e degolas, mas a profanação do cadáver de Héctor é a mais atroz, é o clímax do livro. Porque quem não respeita seus mortos, não respeita nada. Nem sequer a si mesmo.

domingo, 19 de abril de 2020

Como sairemos da pandemia? Piores.


Em meio à pandemia de Covid-19, a humanidade se vê cada vez mais isolada. Estamos afastados daqueles e daquelas a quem amamos, e não sabemos muito bem quando nem como tudo isso acabará. O que já pode ser vislumbrado é que ao final de tudo isso, muitos estarão bastante traumatizados, uma vez que muita gente não consegue lidar com a obrigação do isolamento, desenvolvendo, assim, condições que precisarão ser tratadas por profissionais. A humanidade sairá mentalmente quebrada. E como “consertar” uma humanidade mentalmente quebrada?

Ao lermos os jornais, notamos que uma pergunta se faz recorrente: “Ao término da pandemia, sairemos pessoas melhores ou piores?” Um resposta para essa pergunta precisa levar em consideração inúmeros fatores de ordem política, histórica e sociocultural. Por exemplo, os ricos que estão fazendo as carreatas da morte por todo o país, interrompendo o trânsito em frente aos hospitais, pressionando os governos estaduais a abrir o comércio, buscando convencer seu funcionário a voltar ao trabalho, se infectar e morrer para o bem da empresa que o oprime desde sempre, sairão bem, como sempre se saíram ao longo da história desse país. Para esses senhores, seus empregados são apenas números. Não são gente. Que morram! Poderíamos pensar que eles sairiam mentalmente abalados, mas isso certamente não acontecerá. São predatórios. A fera caçadora não se preocupa com a caça. Assim, essas pessoas, enroladas na bandeira brasileira, travando as avenidas do país com seus carros luxuosos, não sairão nem melhores nem piores. Sairão do jeito que sempre foram, ou seja, mesquinhos, medíocres e felizes na sua estupidez.
As pessoas pobres, por sua vez, sairão alquebradas, física e mentalmente extenuadas, pois terão perdido entes queridos, amigos, vizinhos, amores. Tudo que tinham poderá ter sido posto num saco preto e jogado numa vala coletiva de um cemitério qualquer. Quem se importará? Os políticos que agora defendem a flexibilização do isolamento ( “pobre bom é pobre morto”),  os ricaços da lista da Forbes ou a grande mídia, que contribuiu para que o esgoto ascendesse ao poder máximo da República? Ninguém desse grupo, na verdade, se importará com a tragédia que está por vir, com o genocídio que se avizinha. Os “cidadãos de segunda classe” estão entregues à própria sorte num país à deriva.

Em meio a tudo isso, contamos com o silêncio conivente das Instituições que sempre foram extremamente ágeis quando aqueles que ocupavam o Executivo eram outros, os outros. Estariam tais Instituições funcionando? E se estão, em favor de quem? Cabe-nos perguntar, por onde andam os ministros “iluministas” do STF, a Câmara, o Senado, as associações e organizações que foram tão ativas ao se posicionarem em favor da deposição da presidenta Dilma Rousseff, por exemplo. Esse silêncio sepulcral se ampliará à medida em que se abrem centenas de covas nos cemitérios do país. Os cadáveres pesarão nas costas de todos que se omitiram e foram coniventes com o projeto de instalação da barbárie no Brasil. Os resultados já estão aí, e penso: como será difícil esconder tanto cadáver!

Em algum momento a pandemia passará, uma cura terá sido encontrada, e a sorrir, parafraseando Cartola, pretenderemos levar a vida. Contudo, não acreditamos que a humanidade saia melhor de tudo isso. Aqueles que oprimem, retornarão com mais vontade de oprimir, enquanto a política continuará a bradar e defender  que a economia é muito mais importante que a vida (dos pobres, claro). O ser humano sairá muito pior da pandemia, não por ser uma criatura naturalmente má, mas por ser, conforme o escritor José de Alencar, “um sistema de contrariedades”, e não conseguir aprender com aquilo que lhe acontece. Peguemos qualquer momento da história da humanidade (as Guerras Mundiais, o Holocausto, a escravidão etc) e veremos que pouco ou quase nada se aprendeu. Reconhecemos, no entanto, que nada é absoluto e que nenhum manual ou receita pode dizer de maneira assertiva do que o ser humano é capaz, embora seja previsível. 

Do isolamento, façamos nossas apostas.