segunda-feira, 29 de abril de 2019

BECKETT E DIAS GOMES NO BRASIL DE BOLSONARO, POR HENRIQUE BALBI

Por Henrique Balbi - 10/04/2019

BECKETT E DIAS GOMES NO BRASIL DE BOLSONARO: DUAS RESENHAS DE PEÇAS IMAGINÁRIAS.

'Esperando Guedês' e o 'Bem-Armado', releituras para um país da "Nova Era"

Finalmente saiu no Brasil A Literatura Nazista na América , de Roberto Bolaño. Espécie de Big Bang da obra do escritor chileno, o livro se baseia numa técnica consagrada por Jorge Luis Borges: comentar textos imaginários como se já existissem. No caso de Bolaño, a técnica é usada para esmiuçar a relação entre arte e autoritarismo – A Literatura Nazista na América reúne perfis de escritores imaginários associados ao nazifascismo (sempre bom ressaltar: movimento de extrema direita, tá ok?). Suas obras e sua existência são ficcionais, mas o vínculo que denunciam, entre as letras e a violência, é real.
Aproveito que a técnica borgeana voltou à cena para utilizá-la. Será preciso, porém, fazer alguns ajustes, pois nossa realidade difere da que Borges e Bolaño captaram (talvez difiram mais em grau do que em natureza). Nossos hermanos imaginaram e comentaram obras literárias; a seguir, comentarei peças de teatro, adaptadas com liberdade talvez excessiva. Aí está outra diferença importante: as duas peças imaginárias resenhadas a seguir são na verdade variantes de peças já existentes, que o leitor há de reconhecer, assim como há de reconhecer a realidade que as inspira.
Além do enredo, é preciso imaginar também o palco, o público, os aplausos, o que talvez seja pedir demais. De todo modo, acho que o exercício não será inútil, pois o Brasil anda precisando, desesperadamente, de uma imaginação mais afiada.

Esperando Guedês

Obra mais famosa de Samuel Beckett, Esperando Godot desperta interesse não apenas pela sua importância na história do teatro, com suas inovações formais e cênicas, como também pela história de suas montagens. Basta lembrar um exemplo, talvez o mais dramático: Susan Sontag produziu e dirigiu a peça durante o Cerco de Sarajevo, na Guerra da Bósnia.
É nessa linhagem de encenações peculiares que se encaixa Esperando Guedês , recentemente encenada em Brasília. Extremamente cioso de suas peças, Beckett com certeza se arrepiaria ao ver que a equipe tomou amplas liberdades: aboliu um cenário fixo, trocando-o por corredores de prédios da administração pública e de grandes empresas; multiplicou os atores que encarnam a dupla de protagonistas; optou por explicitar o tempo e o espaço em que a ação (ou a falta dela) se passa – Brasília, ano de 2019.
Como se sabe, a peça retrata duas personagens (Vladimir e Estragon) à espera de um senhor que nunca vem. O título da montagem já entrega o ator escalado para a não aparição: Paulo Guedes, superministro da Fazenda. Nesta versão, Guedes viria junto com um pacote de medidas que reaqueceriam a economia brasileira, incluindo uma reforma da Previdência muito desejada pelo empresariado e outras ações quase mágicas, responsáveis por afagar a mão invisível do mercado. É razoável supor que, sendo a peça fiel à concepção beckettiana, também esses resultados façam como Godot – não venham.
O dramaturgo Samuel Beckett durante ensaio de montagem de sua peça,
O dramaturgo Samuel Beckett durante ensaio de montagem de sua peça, "Esperando por Godot" Roger Viollet/Getty Images) Foto: Roger Viollet / Lipnitzki / Getty Images
A montagem foi particularmente feliz ao escalar deputados, grandes empresários e demais figuras de mando, que se revezam nos papéis de Vladimir e Estragon. Isso nos permite rir de suas caras abobalhadas, no aguardo de uma articulação política que tente aprovar as reformas e que jamais aparece. Enquanto esperam, os protagonistas buscam entender o que houve: Guedes furou? Alguém o chamou de tchutchuca ou algo parecido? O governo quer mesmo aprovar essas medidas? O tom sarcástico da peça alcança um momento de brilho quando um dos protagonistas, irado, resolve cobrar seriedade e responsabilidade de um governo que se acha um mito, mas que não passa de mitomania.
O noticiário sugere e esta montagem confirma: o Brasil de hoje não passa de uma versão pornochanchada de uma tragicomédia de Beckett.

O Bem-Armado

Quem não se lembra da imortal figura de Odorico Paraguaçu, praticamente o santo padroeiro da política brasileira, seu exemplo máximo, seu arquétipo platônico? Pois ele está de volta. Não apenas nas urnas, como também nos palcos.
O enredo é conhecido: Odorico se elege prefeito de Sucupira, com a promessa de inaugurar um cemitério. A população, porém, não colabora, já que ninguém lhe faz o favor de morrer. Odorico, então, precisa providenciar um defunto o quanto antes – nem que para isso tenha de contratar um miliciano, quer dizer, um pistoleiro.
Desde já, é preciso esclarecer a dificuldade de se resenhar uma obra em andamento. A equipe fez uma opção ousadíssima: a peça se estenderá por cerca de quatro anos, com os atores encarnando ininterruptamente seus papéis até que o mandato de Odorico se encerre, nesse intervalo ou antes. Para dar conta de tamanha duração, levando em conta que o texto de Dias Gomes é curto, a equipe contratou roteiristas adicionais. Eles organizaram a ação dramática em ciclos de fabricação e abafamento de escândalos – primeiro, Odorico lança declarações polêmicas, fala pelos cotovelos, lança absurdos a torto e à direita; depois, recua, nega, chama tudo de fake news, etc.
Destacamos duas escolhas muito interessantes da montagem. Primeiro, a ênfase no tema do armamento, que justifica a mudança do título da peça. Odorico e seu entorno demonstram uma obsessão por revólveres e pistolas, o que combina perfeitamente com um enredo todo baseado na dupla matar/morrer. Isso é reforçado pela sonoplastia, toda construída com um ruído de fundo, constante, repetitivo: oitenta sons de disparos, de tiros. É uma paisagem sonora lamentavelmente comum no Brasil, que a obsessão de Odoricos só tende a perpetuar.
Segundo, é preciso elogiar a decisão de expandir o círculo de apoiadores de Odorico, incluindo nas figuras centrais a família Paraguaçu – em especial, seus filhos, todos eleitos para funções legislativas em Sucupira. Chamam atenção a prepotência de um, a virulência de outro, a cara de bobo de um terceiro, que contribuem para delinear um perfil próprio a cada filho, embora todos – incluindo Odorico – ajam de modo caricatural. Acompanharemos com especial interesse o desenrolar de uma das tramas secundárias: o envolvimento explícito de um dos filhos com o pistoleiro. Aparentemente, este filho de Odorico empregou familiares do pistoleiro em seu gabinete, e inclusive o elogiou num discurso na Câmara. Essa trama secundária tem ainda muitos pontos obscuros, e mal podemos esperar seus desdobramentos, inclusive jurídicos e quem sabe carcerários.
Por fim, precisamos apontar um problema na peça. É fato que a personagem de Odorico se destacou e se tornou memorável por sua eloquência. O ator escolhido, no entanto, deixa muito a desejar. Não sabe falar, mal junta as frases de modo coerente. Dá a impressão de que não decora seus textos. Talvez nem os entenda direito. Tal escalação faz o público mais exigente questionar a verossimilhança da personagem: como alguém com tanta dificuldade de expressão se elegeria? Não faria sentido um político, cuja principal ferramenta é a palavra, ser tão inepto e confuso ao discursar. É o que nos perguntamos também.
Esperamos que o desenrolar da peça revele as razões da escolha. Mas, a julgar pela produção teatral contemporânea, desconfiamos de que o fim da peça – e do país que a inspira – será shakespeariano, à maneira do que diz Macbeth em cena famosa (na tradução de Barbara Heliodora): “A vida é só uma sombra: um mau ator / que grita e se debate pelo palco, / depois é esquecido; é uma história / que conta o idiota, todo som e fúria / sem querer dizer nada.”

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