segunda-feira, 29 de abril de 2019

RALPH ELLISON: A CAUSA E O EFEITO, POR LUIZ MAURÍCIO AZEVEDO


Ralph Ellison: a causa e o efeito
Por Luiz Maurício Azevedo
16 de abril de 2019

Em 2019 completam-se 25 anos da morte do escritor afroamericano Ralph Ellison. Nascido em 1919, em Oklahoma, Ellison tornou-se notório por escrever aquela que é, sem dúvida, a obra obrigatória de toda a tradição literária negra nos Estados Unidos: Homem invisível. Publicado em 1952, o livro é basicamente uma carta-explicação sobre os motivos pelos quais um homem decide optar por viver dentro do subsolo da cidade de Nova York. O protagonista salta de decepção em decepção, fracassando em toda socialização que empreende. A experiência de ser negro nos Estados Unidos é como uma trajetória trágica, cheia de mal entendidos, frustrações, injustiças e imoralidades.

No Brasil, há duas traduções do livro disponíveis: uma datada de 1990, produção da editora Marco Zero, editada na esteira do centenário da abolição da escravatura, ocorrido no ano anterior. A outra edição é de 2013 e foi produzida pela José Olympio. Àquela altura, Homem invisível só podia ser encontrada em sebos. Em 2012, exemplares da obra eram comercializados por até duzentos reais cada, em sites como Estante Virtual e Mercado Livre. O hiato entre a primeira e a segunda tradução tem muitas explicações editoriais: a aquisição dos direitos de publicação de uma obra é um processo complexo, que envolve longa negociação, poder aquisitivo e elementos culturais. E isso sem dúvida pesou na sentença de afastar o leitor brasileiro desse livro seminal. Contudo, é possível que a conjuntura social brasileira tenha tido mais peso nessas decisões do que as demandas editoriais.

Explico: Homem invisível é um ataque frontal a dois tipos de ilusão. A primeira é de que pessoas negras podem se comportar como pessoas brancas e obter do mundo as mesmas reações que colheriam se não fossem negras. A segunda é a de que um projeto de coletividade – seja ele político, seja ele religioso – pode oferecer resposta para as angústias profundas de um indivíduo. Ellison se esforçou para demonstrar em sua obra que fatores socioeconômicos turvavam a visão sobre um ser humano, mas que não podiam determiná-lo. Para grande parte dos leitores estadunidenses, o livro é uma potente bandeira liberal sobre os riscos do pensamento de manada, das associações e das entidades que vendem a ideia de que os trabalhadores desejam algo diferente de seus chefes.

Essa concepção tornou Homem invisível de certa forma inútil para o Brasil, país onde o capitalismo hiberna, há décadas, em um limbo que coaduna atraso e identidade racial esquizofrênica. Por aqui, o livro encontra dificuldades em sua recepção porque seus principais temas são conduzidos por nós de forma bastante negativa, e a questão racial é um pesadelo que negamos como país. Por outro lado, sempre foi interessante para grande parte de nossa crítica a descrição do outro como sendo uma vítima passiva, e nossa literatura – eurodescendente – jamais pode dar conta do problema racial.
Homem invisível parece ser o último suspiro essencialista de um autor profundamente existencialista. A complexidade de sua obra não deixa espaço para o proselitismo tão palatável ao ambiente das elites nacionais, sempre dispostas a ouvir a canção dos outros quando os outros se dispõem a louvá-los, no espetáculo perdido da vida humana.

Nos Estados Unidos, membros do Partido Comunista rejeitaram a obra. Acreditavam estar frente a um romance que desenhava com traços agressivos e pejorativos uma comunidade que já estava suficientemente massacrada pela má-fama. No campo conservador, a reação foi bastante diferente. Houve uma série de manifestações que misturaram racismo e admiração. Orville Prescott, célebre crítico do The New York Times, chamou o livro de “impressionante realização; o melhor talento literário que já vi em um negro”. Fredrik Spotchen, da extinta revista Millestone, disse ser Ralph Ellison “uma espécie de James Joyce do Harlem”.

Entre os negros a obra atingiu grande notoriedade ao longo das décadas. Barack Obama atribui um grande peso em seu processo de formação. A cultura pop também presta constantes tributos à obra: na série Luke Cage, produzida pela Netflix, o protagonista tem Homem invisível como livro de cabeceira, em meio à sua improvável rotina de super-herói.  Em Todo mundo odeia o Chris, série cômica, escrita por Chris Rock, há uma exploração bem humorada da centralidade da obra no sistema escolar americano e o modo como certos indivíduos negros lidam com a herança cultural do seu próprio grupo.

O autor, contudo, não goza de igual destaque. Seu temperamento difícil e a inclinação pelo criticismo mais ácido fizeram dele uma figura complexa, com poucos acessos sócio-midiáticos. Não há camisetas com seu rosto; não há canecas com suas frases; não há celebração pública de sua figura histórica. Ellison tornou-se uma espécie de raiz da qual a própria invisibilidade é uma mera consequência lógica.

Homem invisível foi publicado em um momento em que o Modernismo estava em franca crise nos Estados Unidos. A forma-romance parecia encontrar uma limitação. Os elementos centrais da vida cultural negra por aquelas bandas (a saber: o jazz, a oralidade, a religiosidade e o mito da ascensão social) foram usados pelo autor para refazer a indagação-base de toda investigação filosófica séria: “quem sou?” É por isso que a obra começa com um significativo: “sou um homem invisível”. Ser capaz de determinar aquilo que se é, longe de ser uma limitação, é uma libertação. E, especificamente para indivíduos negros, significa desfazer as minas tóxicas que foram ardilosamente colocadas pela ideologia racial.

Luiz Maurício Azevedo é doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP; autor de A toupeira invisível: marxismo negro e cultura antimarxista em Ralph Ellison (Editora Figura de Linguagem)


BECKETT E DIAS GOMES NO BRASIL DE BOLSONARO, POR HENRIQUE BALBI

Por Henrique Balbi - 10/04/2019

BECKETT E DIAS GOMES NO BRASIL DE BOLSONARO: DUAS RESENHAS DE PEÇAS IMAGINÁRIAS.

'Esperando Guedês' e o 'Bem-Armado', releituras para um país da "Nova Era"

Finalmente saiu no Brasil A Literatura Nazista na América , de Roberto Bolaño. Espécie de Big Bang da obra do escritor chileno, o livro se baseia numa técnica consagrada por Jorge Luis Borges: comentar textos imaginários como se já existissem. No caso de Bolaño, a técnica é usada para esmiuçar a relação entre arte e autoritarismo – A Literatura Nazista na América reúne perfis de escritores imaginários associados ao nazifascismo (sempre bom ressaltar: movimento de extrema direita, tá ok?). Suas obras e sua existência são ficcionais, mas o vínculo que denunciam, entre as letras e a violência, é real.
Aproveito que a técnica borgeana voltou à cena para utilizá-la. Será preciso, porém, fazer alguns ajustes, pois nossa realidade difere da que Borges e Bolaño captaram (talvez difiram mais em grau do que em natureza). Nossos hermanos imaginaram e comentaram obras literárias; a seguir, comentarei peças de teatro, adaptadas com liberdade talvez excessiva. Aí está outra diferença importante: as duas peças imaginárias resenhadas a seguir são na verdade variantes de peças já existentes, que o leitor há de reconhecer, assim como há de reconhecer a realidade que as inspira.
Além do enredo, é preciso imaginar também o palco, o público, os aplausos, o que talvez seja pedir demais. De todo modo, acho que o exercício não será inútil, pois o Brasil anda precisando, desesperadamente, de uma imaginação mais afiada.

Esperando Guedês

Obra mais famosa de Samuel Beckett, Esperando Godot desperta interesse não apenas pela sua importância na história do teatro, com suas inovações formais e cênicas, como também pela história de suas montagens. Basta lembrar um exemplo, talvez o mais dramático: Susan Sontag produziu e dirigiu a peça durante o Cerco de Sarajevo, na Guerra da Bósnia.
É nessa linhagem de encenações peculiares que se encaixa Esperando Guedês , recentemente encenada em Brasília. Extremamente cioso de suas peças, Beckett com certeza se arrepiaria ao ver que a equipe tomou amplas liberdades: aboliu um cenário fixo, trocando-o por corredores de prédios da administração pública e de grandes empresas; multiplicou os atores que encarnam a dupla de protagonistas; optou por explicitar o tempo e o espaço em que a ação (ou a falta dela) se passa – Brasília, ano de 2019.
Como se sabe, a peça retrata duas personagens (Vladimir e Estragon) à espera de um senhor que nunca vem. O título da montagem já entrega o ator escalado para a não aparição: Paulo Guedes, superministro da Fazenda. Nesta versão, Guedes viria junto com um pacote de medidas que reaqueceriam a economia brasileira, incluindo uma reforma da Previdência muito desejada pelo empresariado e outras ações quase mágicas, responsáveis por afagar a mão invisível do mercado. É razoável supor que, sendo a peça fiel à concepção beckettiana, também esses resultados façam como Godot – não venham.
O dramaturgo Samuel Beckett durante ensaio de montagem de sua peça,
O dramaturgo Samuel Beckett durante ensaio de montagem de sua peça, "Esperando por Godot" Roger Viollet/Getty Images) Foto: Roger Viollet / Lipnitzki / Getty Images
A montagem foi particularmente feliz ao escalar deputados, grandes empresários e demais figuras de mando, que se revezam nos papéis de Vladimir e Estragon. Isso nos permite rir de suas caras abobalhadas, no aguardo de uma articulação política que tente aprovar as reformas e que jamais aparece. Enquanto esperam, os protagonistas buscam entender o que houve: Guedes furou? Alguém o chamou de tchutchuca ou algo parecido? O governo quer mesmo aprovar essas medidas? O tom sarcástico da peça alcança um momento de brilho quando um dos protagonistas, irado, resolve cobrar seriedade e responsabilidade de um governo que se acha um mito, mas que não passa de mitomania.
O noticiário sugere e esta montagem confirma: o Brasil de hoje não passa de uma versão pornochanchada de uma tragicomédia de Beckett.

O Bem-Armado

Quem não se lembra da imortal figura de Odorico Paraguaçu, praticamente o santo padroeiro da política brasileira, seu exemplo máximo, seu arquétipo platônico? Pois ele está de volta. Não apenas nas urnas, como também nos palcos.
O enredo é conhecido: Odorico se elege prefeito de Sucupira, com a promessa de inaugurar um cemitério. A população, porém, não colabora, já que ninguém lhe faz o favor de morrer. Odorico, então, precisa providenciar um defunto o quanto antes – nem que para isso tenha de contratar um miliciano, quer dizer, um pistoleiro.
Desde já, é preciso esclarecer a dificuldade de se resenhar uma obra em andamento. A equipe fez uma opção ousadíssima: a peça se estenderá por cerca de quatro anos, com os atores encarnando ininterruptamente seus papéis até que o mandato de Odorico se encerre, nesse intervalo ou antes. Para dar conta de tamanha duração, levando em conta que o texto de Dias Gomes é curto, a equipe contratou roteiristas adicionais. Eles organizaram a ação dramática em ciclos de fabricação e abafamento de escândalos – primeiro, Odorico lança declarações polêmicas, fala pelos cotovelos, lança absurdos a torto e à direita; depois, recua, nega, chama tudo de fake news, etc.
Destacamos duas escolhas muito interessantes da montagem. Primeiro, a ênfase no tema do armamento, que justifica a mudança do título da peça. Odorico e seu entorno demonstram uma obsessão por revólveres e pistolas, o que combina perfeitamente com um enredo todo baseado na dupla matar/morrer. Isso é reforçado pela sonoplastia, toda construída com um ruído de fundo, constante, repetitivo: oitenta sons de disparos, de tiros. É uma paisagem sonora lamentavelmente comum no Brasil, que a obsessão de Odoricos só tende a perpetuar.
Segundo, é preciso elogiar a decisão de expandir o círculo de apoiadores de Odorico, incluindo nas figuras centrais a família Paraguaçu – em especial, seus filhos, todos eleitos para funções legislativas em Sucupira. Chamam atenção a prepotência de um, a virulência de outro, a cara de bobo de um terceiro, que contribuem para delinear um perfil próprio a cada filho, embora todos – incluindo Odorico – ajam de modo caricatural. Acompanharemos com especial interesse o desenrolar de uma das tramas secundárias: o envolvimento explícito de um dos filhos com o pistoleiro. Aparentemente, este filho de Odorico empregou familiares do pistoleiro em seu gabinete, e inclusive o elogiou num discurso na Câmara. Essa trama secundária tem ainda muitos pontos obscuros, e mal podemos esperar seus desdobramentos, inclusive jurídicos e quem sabe carcerários.
Por fim, precisamos apontar um problema na peça. É fato que a personagem de Odorico se destacou e se tornou memorável por sua eloquência. O ator escolhido, no entanto, deixa muito a desejar. Não sabe falar, mal junta as frases de modo coerente. Dá a impressão de que não decora seus textos. Talvez nem os entenda direito. Tal escalação faz o público mais exigente questionar a verossimilhança da personagem: como alguém com tanta dificuldade de expressão se elegeria? Não faria sentido um político, cuja principal ferramenta é a palavra, ser tão inepto e confuso ao discursar. É o que nos perguntamos também.
Esperamos que o desenrolar da peça revele as razões da escolha. Mas, a julgar pela produção teatral contemporânea, desconfiamos de que o fim da peça – e do país que a inspira – será shakespeariano, à maneira do que diz Macbeth em cena famosa (na tradução de Barbara Heliodora): “A vida é só uma sombra: um mau ator / que grita e se debate pelo palco, / depois é esquecido; é uma história / que conta o idiota, todo som e fúria / sem querer dizer nada.”

domingo, 21 de abril de 2019

POR QUE TARSILA DO AMARAL INSPIRA?


Nascida no final do século XIX, foi criada para ser esposa e mãe. Ousou fazer diferente. Ousou escolher o lugar que queria ocupar no mundo, agiu para isso



Tarsilinha do Amaral

15 ABR 2019

O MASP inaugurou neste mês a mais ampla exposição de Tarsila do Amaral já realizada na história. A mais numerosa foi a da Pinacoteca de São Paulo, em 2008. Depois outras duas exposições potentes, realizadas pelo Art Institute of Chicago e pelo MoMA de Nova York, têm colocado a obra da artista brasileira em um novo patamar de reconhecimento global.

Há poucas semanas, após dois anos de pesquisa e negociações, um dos mais importantes museus do mundo, o MoMA, adquiriu para o seu acervo a obra “A Lua” (1928), que já está exposta na sua principal sala, ao lado de um importante quadro de Picasso.

O mercado estima que a venda tenha se dado com um valor em torno dos 20 milhões de dólare (quase  80 milhões de reais no câmbio do dia), algo inédito para a pintura brasileira e que fez aumentar exponencialmente o valor de toda a obra da artista. Com esta venda, Tarsila entrou no rol dos maiores pintores de todos os tempos. Estima-se que Abaporu, vendido em 1995 por 1,5 milhões de dólares, hoje possa valer mais de 100 milhões de dólares.
Auto-retrato de Tasila do Amaral.
Como sua sobrinha-neta homônima, conheço e contemplo a obra de Tarsila desde muito pequena. Ao entrar na exposição montada com maestria pelo MASP, lembro da casa dela e das paredes das casas de meus familiares, que já foram decoradas com as peças, hoje valorizadas internacionalmente. Tarsila adorava presentear os parentes com seus trabalhos.
Mas muito além de rever estas cores e formas tão peculiares, além de rememorar tantas histórias íntimas envolvendo minha tia-avó, essas grandes exposições (e os olhares que tais mostras suscitam em torno da obra) me fazem rever a dimensão desta mulher no mundo.
É uma obviedade dizer que dos anos 20 para cá muita coisa mudou. Olhar a criação de qualquer artista sob as perspectivas de comportamento atualizadas para 2019 poderia revelar uma obra datada.
Tenho feito isso com Tarsila. E ao rever sua obra, entendo cada vez mais seu vanguardismo feito em voz baixa. Digo isso porque Tarsila era discreta. A partir da mais icônica de suas obras, Abaporu, Tarsila inspirou o manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. Não o escreveu, nem o leu em voz alta no Theatro Municipal de São Paulo. Inspirou-o.
Em uma tela em branco, Tarsila escolheu pintar com cores que seus professores diziam “feias”, de mau gosto. Cores fortes, cheias de luz, do jeito que ela enxergava nas paisagens do interior do Brasil, seu habitat natural, as cores caipiras.
Em uma época na qual a pintura retratava majoritariamente personagens brancos, Tarsila criou “A Negra”, exposta no MoMA e agora no MASP com a devida importância afetiva que a personagem ali representada tinha para a artista.
A família pouco sabe sobre a mulher real retratada na obra, porém, no Álbum de viagens da artista, uma foto bastante semelhante a este quadro dá a dimensão dessa relação afetiva.
Ao longo da exposição no MoMA, conversei com diversos frequentadores da mostra e não posso esquecer um funcionário do museu, senhor negro americano, que sorriu ao dizer que a obra que ele mais tinha gostado era “A Negra”, porque se sentiu representado nela. Quantos personagens negros já ocuparam as paredes do MoMA?
Em “Operários”, Tarsila representou de forma crítica e direta a pirâmide da desigualdade social no Brasil desde sempre. Após uma viagem à então União Soviética, Tarsila foi presa por seu envolvimento com a esquerda e acusada de subversiva no Brasil dos anos 1932.
Tarsila era filha de aristocratas. Nascida no final do século XIX, foi criada para ser esposa e mãe. Ousou fazer diferente. Ousou escolher o lugar que queria ocupar no mundo, agiu para isso. Ousou escolher as cores caipiras, a despeito dos grandes mestres com quem estudou. Ousou divorciar-se do primeiro marido, se apaixonar e casar com o escritor Oswald de Andrade, ser abandonada por ele, e ousou ainda casar-se novamente com um homem vinte anos mais novo que ela.
Ousou criar o Abaporu para dar de presente a Oswald, seu marido na época - para mim, um autorretrato de uma mulher apaixonada. Depois do envolvimento dele com a jovem Pagu, o quadro foi pedido de volta por Tarsila no momento da separação do casal, em troca de um já valorizado quadro do pintor italiano De Chirico.
Tarsila ousou dizer publicamente que queria ser a pintora do Brasil. Não teve medo de dizer isso em Paris, a cidade onde passou grande parte dos anos 20, que era a capital do mundo artístico na época.
A despeito de todos os papéis pensados para uma mulher filha de fazendeiros nascida em 1886 na cidade de Capivari, interior de São Paulo, a exposição “Tarsila Popular” em cartaz no MASP mostra que ela conquistou o lugar que desejou para sua existência. Por tudo isso, Tarsila inspira.
Tarsilinha do Amaral é advogada, sobrinha-neta da artista e representante do espólio de Tarsila do Amaral
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domingo, 7 de abril de 2019

Por que têm tanto medo de Lula livre, se já atingiram o objetivo?

Folha de São Paulo
07 de abril de 2019

Faz um ano que estou preso injustamente, acusado e condenado por um crime que nunca existiu. Cada dia que passei aqui fez aumentar minha indignação, mas mantenho a fé num julgamento justo em que a verdade vai prevalecer. Posso dormir com a consciência tranquila de minha inocência. Duvido que tenham sono leve os que me condenaram numa farsa judicial.
O que mais me angustia, no entanto, é o que se passa com o Brasil e o sofrimento do nosso povo. Para me impor um juízo de exceção, romperam os limites da lei e da Constituição, fragilizando a democracia. Os direitos do povo e da cidadania vêm sendo revogados, enquanto impõem o arrocho dos salários, a precarização do emprego e a alta do custo de vida. Entregam a soberania nacional, nossas riquezas, nossas empresas e até o nosso território para satisfazer interesses estrangeiros.
Hoje está claro que a minha condenação foi parte de um movimento político a partir da reeleição da presidenta Dilma Rousseff, em 2014. Derrotada nas urnas pela quarta vez consecutiva, a oposição escolheu o caminho do golpe para voltar ao poder, retomando o vício autoritário das classes dominantes brasileiras.
O golpe do impeachment sem crime de responsabilidade foi contra o modelo de desenvolvimento com inclusão social que o país vinha construindo desde 2003. Em 12 anos, criamos 20 milhões de empregos, tiramos 32 milhões de pessoas da miséria, multiplicamos o PIB por cinco. Abrimos a universidade para milhões de excluídos. Vencemos a fome.
Aquele modelo era e é intolerável para uma camada privilegiada e preconceituosa da sociedade. Feriu poderosos interesses econômicos fora do país. Enquanto o pré-sal despertou a cobiça das petrolíferas estrangeiras, empresas brasileiras passaram a disputar mercados com exportadores tradicionais de outros países.
O impeachment veio para trazer de volta o neoliberalismo, em versão ainda mais radical. Para tanto, sabotaram os esforços do governo Dilma para enfrentar a crise econômica e corrigir seus próprios erros. Afundaram o país num colapso fiscal e numa recessão que ainda perdura. Prometeram que bastava tirar o PT do governo que os problemas do país acabariam.
O povo logo percebeu que havia sido enganado. O desemprego aumentou, os programas sociais foram esvaziados, escolas e hospitais perderam verbas. Uma política suicida implantada pela Petrobras tornou o preço do gás de cozinha proibitivo para os pobres e levou à paralisação dos caminhoneiros. Querem acabar com a aposentadoria dos idosos e dos trabalhadores rurais.
Nas caravanas pelo país, vi nos olhos de nossa gente a esperança e o desejo de retomar aquele modelo que começou a corrigir as desigualdades e deu oportunidades a quem nunca as teve. Já no início de 2018 as pesquisas apontavam que eu venceria as eleições em primeiro turno.
Era preciso impedir minha candidatura a qualquer custo. A Lava Jato, que foi pano de fundo no golpe do impeachment, atropelou prazos e prerrogativas da defesa para me condenar antes das eleições. Haviam grampeado ilegalmente minhas conversas, os telefones de meus advogados e até a presidenta da República. Fui alvo de uma condução coercitiva ilegal, verdadeiro sequestro. Vasculharam minha casa, reviraram meu colchão, tomaram celulares e até tablets de meus netos.
Nada encontraram para me incriminar: nem conversas de bandidos, nem malas de dinheiro, nem contas no exterior. Mesmo assim fui condenado em prazo recorde, por Sergio Moro e pelo TRF-4, por “atos indeterminados” sem que achassem qualquer conexão entre o apartamento que nunca foi meu e supostos desvios da Petrobras. O Supremo negou-me um justo pedido de habeas corpus, sob pressão da mídia, do mercado e até das Forças Armadas, como confirmou recentemente Jair Bolsonaro, o maior beneficiário daquela perseguição.
Minha candidatura foi proibida contrariando a lei eleitoral, a jurisprudência e uma determinação do Comitê de Direitos Humanos da ONU para garantir os meus direitos políticos. E, mesmo assim, nosso candidato Fernando Haddad teve expressivas votações e só foi derrotado pela indústria de mentiras de Bolsonaro nas redes sociais, financiada por caixa 2 até com dinheiro estrangeiro, segundo a imprensa.
Os mais renomados juristas do Brasil e de outros países consideram absurda minha condenação e apontam a parcialidade de Sergio Moro, confirmada na prática quando aceitou ser ministro da Justiça do presidente que ele ajudou a eleger com minha condenação. Tudo o que quero é que apontem uma prova sequer contra mim.
Por que têm tanto medo de Lula livre, se já alcançaram o objetivo que era impedir minha eleição, se não há nada que sustente essa prisão? Na verdade, o que eles temem é a organização do povo que se identifica com nosso projeto de país. Temem ter de reconhecer as arbitrariedades que cometeram para eleger um presidente incapaz e que nos enche de vergonha.
Eles sabem que minha libertação é parte importante da retomada da democracia no Brasil. Mas são incapazes de conviver com o processo democrático.
Luiz Inácio Lula da Silva
Ex-presidente da República (2003-2010)