O Brasil continua matando. E matando muito. Os casos diários de feminicídios são uma mácula a mais na nação que mais mata pobres, pretos, travestis e mulheres. Se tivéssemos um jornalismo sério, certamente que algo poderia estar mudando, mas em tempos estranhos como esses o jornalismo tem outras preocupações, como derrubar governos democraticamente eleitos, por exemplo. Nesse contexto, a barbárie se alastra, enquanto o descaso, o cinismo e a ignorância de certas autoridades se tornam patente.
Sobre o bárbaro assassinato da professora Mayara Amaral, reproduzimos aqui o certeiro texto da psicóloga Patrícia Zaidan, bastante oportuno para se discutir até onde tudo isso vai parar. Segue o texto:
Três homens contra Mayara Amaral. Ela está morta. Carbonizada
A polícia embarca na versão dos agressores, investiga como latrocínio e desconsidera a hipótese de feminicídio. O jornalismo erra junto com ela.
Disponível em: http://claudia.abril.com.br/blog/coluna-da-patricia-zaidan/tres-homens-contra-mayara-amaral-ela-esta-morta-carbonizada/
Mayara Amaral |
O jornalismo está devendo
muito às mulheres. Devendo respeito à verdade delas. As informações publicadas
na chamada grande imprensa sobre a barbaridade cometida contra a musicista
Mayara Amaral, 27 anos, são um vexame. A violonista, que vivia em Campo Grande,
foi dada como desaparecida na segunda-feira (24/7). Seu corpo ressurgiu
carbonizado na terça. Embora tenha todas as características de
feminicídio, de crime horrendo que envolveu três homens, rito machista que
subjugou a mulher e abuso sexual seguido de morte, as autoridades do caso
conduzem as investigações no escopo do latrocínio — o roubo que se
completa na extinção da vida.
Foi preciso que Pauliane
Amaral, irmã mais velha de Mayara, se insurgisse contra o tratamento dado por
policiais e jornalistas. Só assim soubemos o que aconteceu de verdade. Antes de
ela postar seu texto nas redes sociais, nenhum veículo havia usado a palavra feminicídio. Pior,
as notícias induziam à versão de uma Mayara que topou uma balada pesada com os
estupradores, deu brechas para o triste fim. A escolha de fotos dela
para ilustrar jornais físicos e digitais recaiu na linha batom vermelho ou em
poses que, no contexto, tentam conferir contornos de frivolidade, volúpia e
erotização. Fora dele, as fotos são de uma mulher como todas nós. Uma
brasileira comum.
No mínimo, Tiago Macedo,
o delegado responsável pela apuração, devia se atentar para isto: um dos três
homens presos, Luís Alberto Bastos Barbosa, 29 anos, não era um estranho, mas
alguém com quem Mayara havia saído algumas vezes. Segundo os jornais, Luís é
músico e tocava com Mayara. Eles foram a um motel. Ali, um outro homem
participou do estupro contra ela. Os acusados disseram que a violonista
aceitou. Doutor Tiago Macedo: o senhor não caiu nessa, né? Havia um
martelo. Com o qual Mayara fora golpeada até perder os sentidos. Concordo
com a pergunta de Pauliane: Se Mayara consentiu com a transa a três, por que um
martelo na jogada?
Pauliane diz no texto:
“Eis a versão do monstro: minha irmã consentiu em ser violada, eles decidiram
roubá-la, ela reagiu fisicamente, e eles, sob o efeito de drogas, golpearam-na
com o martelo – ela morreu por acidente.”
O acusado, bem instruído
por seu advogado, pode dar a versão que mais gostar. Mas o delegado, não.
Bem, Luís e o amigo
contaram que puseram Mayara, morta, no carro dela (um Gol velhusco, de 1992),
foram até a casa de um terceiro fulano, dividiram os pertences da violonista (o
tal produto do roubo), lançaram o corpo em um matagal perto da estrada e
tacaram fogo. Apenas as mãos da violonista ficaram inteiras, os outros
membros viraram carvão.
O trio parece ter
convencido o delegado. O veículo Campo Grande News atribuiu
estas pérolas a Tiago Macedo: “Neste caso, ao que tudo indica até o
momento, não houve homicídio. O que aconteceu ali é que o autor, verificando a
possibilidade de cometer um roubo, atraiu a vítima e teve como resultado deste
crime, que é um crime contra o patrimônio, a morte da vítima. Nós verificamos
que existe uma tendência das pessoas afirmarem que porque uma mulher morreu é
feminicídio, mas isso não corresponde ao ordenamento jurídico”.
Ora, se não foi
feminicídio, o hediondo crime de ódio contra as mulheres, o que aconteceu,
então? E o estupro? Não conta, doutor Tiago? Trata-se de mero detalhe? Dispensa
investigação? Não é crime, e sim, consenso!
Três dias após os fatos
não li reportagem investigativa. Não foram ouvidos a família, os
amigos, os funcionários do motel. Ninguém reconstituiu a trajetória macabra. Os
jornalistas esqueceram como se faz bom jornalismo.
Mayara, aos 27 anos,
termina carbonizada. Fim dos sonhos, da breve carreira de musicista, que
incluiu um mestrado na Universidade Federal de Goiás. Seu tema na
dissertação: as mulheres compositoras e intérpretes no violão erudito. Queria
dar visibilidade a elas em um mundo ainda muito másculo. Some uma cidadã que
podia ir longe, amar muito, desenvolver projetos profissionais, pessoais e familiares…
Foram três homens contra
uma mulher. Não vai ficar assim. Haverá uma manifestação em Campo Grande
pedindo apuração severa, rigorosa e pena pesada. Outro ato está sendo planejado
em São Paulo. Nós vamos apoiar.
Transcrevo aqui o
desabafo de Pauliane Amaral, postado por ela nas redes sociais. Trata-se de uma
importante reflexão sobre a polícia e o desrespeito que a imprensa reserva às
mulheres.
“Quem é Mayara Amaral?
Minha irmã caçula,
mulher, violonista com mestrado pela UFG e um dissertação incrível sobre
mulheres compositoras para violão. Desde ontem Mayara Amaral também é vítima de
uma violência que parece cada vez mais banal na nossa sociedade. Crime de ódio
contra as mulheres, contra um gênero considerado frágil e, para alguns,
inferior e digno de ter sua vida tirada apenas por ser jovem, talentosa,
bonita… por ser mulher.
Mais uma vez a sociedade
falhou e uma mulher, uma jovem professora de música de 27 anos, foi outra
vítima da barbárie de homens que não podem nem serem considerados humanos.
Foram três, três homens contra uma jovem mulher.
Um deles, Luis Alberto
Bastos Barbosa, 29 anos, por quem ela estava cegamente apaixonada, atraiu-a
para um motel, levando consigo um martelo na mochila. Lá, ele encontrou um de
seus comparsas.
Em uma das matérias que
noticiaram, o crime os suspeitos dizem que mantiveram relações sexuais com
minha irmã com o consentimento dela. Para que o martelo então, se era
consentido?
Estranhamente, nenhuma
das matérias aparece a palavra ESTUPRO, apesar de todas as evidências.
Às vezes tenho a sensação
de que setores da imprensa estão tomando como verdade a palavra desses
assassinos. O tratamento que dão ao caso me indigna profundamente.
Quando escrevem que
Mayara era a “mulher achada carbonizada” que foi ensaiar com a banda, ela está
em uma foto como uma menina. Quando a suspeita envolvia “namorado”
hiper-sexualizam a imagem dela. Quando a notícia fala que a cena do crime é um
motel, minha irmã aparece vulnerável, molhada na praia.
Quando falam da
inspiração de Mayara, associam-na com a história do pai e avô e a foto muda: é
ela com o violão, porém com sua face cortada. Esse tipo de tratamento não
representa quem minha irmã foi. Isso é desumanização. Por favor, tenham
cuidado, colegas jornalistas.
Para nossa tristeza,
grande parte das notícias dão bastante voz aos assassinos e fazem coro à falsa
ideia de que os acusados só queriam roubar um carro. Um carro que foi vendido por
mil reais. Mil reais. Um Gol quadrado, ano 1992. Se eles quisessem só roubá-la,
não precisariam atraí-la para um motel.
Um dos assassinos, Luís,
de família rica, vai tentar se livrar de uma condenação alegando privação
momentânea dos sentidos por conta de uso de drogas. Não bastando matar a minha
irmã, da forma que fizeram, agora querem destruir sua reputação. Eis a versão
do monstro: minha irmã consentiu em ser violada por eles, elas decidiram
roubá-la, ela reagiu fisicamente e eles, sob o efeito de drogas, golpearam-na
com o martelo – e ela morreu por acidente. Pela memória da minha irmã, e pela
de outras mulheres que passaram por esta mesma violência, não propaguem essa
mentira! Confio que a Polícia e o Ministério Público não aceitarão esta
narrativa covarde, e peço a solidariedade e vigilância de todos para que a
justiça seja feita.
Na delegacia disseram à
minha mãe que uma outra jovem já havia registrado uma denúncia contra Luís por
tentativa de abuso sexual… Investiguem! Se essa informação proceder, este é
mais um crime pelo qual ele deve responder. E uma prova de como a justiça tem
tratado as queixas feitas por nós, mulheres. Se naquela ocasião ele tivesse
sido punido exemplarmente, talvez minha irmã não tivesse sofrido este destino.
Foi tudo premeditado: ela
foi estuprada por dois desumanos.
O terceiro comparsa – não
menos monstruoso – ajudou a levar o corpo da minha irmã para um lugar ermo, e
lá atearam fogo nela, como se a brutalidade das marteladas no crânio já não
fosse crueldade demais. Minha irmã foi encontrada com o corpo ainda em chamas,
apenas de calcinha e uma de suas mãos foi a única parte de seu corpo que sobrou
para que meu pai fizesse o reconhecimento no IML. “Parece que ela fazia uma
nota com os dedos”, disse meu pai pelo telefone.
A confirmação veio logo
depois, com o resultado do exame de DNA. Era ela mesmo e eu gritei um choro
sufocado.
Eu vou dedicar o meu luto
à memória da minha irmã, e a não permitir que ela seja vilipendiada pela versão
imunda de seus algozes. Como tantas outras vítimas de violência, a Mayara
merece JUSTIÇA – não que isso vá diminuir nossa dor, mas porque só isso pode
ajudar a curar uma sociedade doente, e a proteger outras mulheres do mesmo
destino” Pauliane Amaral.
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