Transcrição da fala de Angela Davis na Reitoria da
Universidade Federal da Bahia no dia 25.7.2017
Disponível em: http://www.ocafezinho.com/2017/07/28/na-bahia-angela-davis-denuncia-um-terco-da-populacao-carceraria-feminina-mundial-esta-nos-eua/
Eu não tenho nem
condições de expressar a vocês o quanto estou emocionada por estar aqui nesta
noite. Para mim, é assim que deveria ser a aparência da universidade. Quero
agradecer à Ângela Figueiredo, ao Odara. Quero agradecer também
ao NEIM pelo convite para homenagear o dia 25 de julho. Essa é minha
quarta visita a Bahia e sexta ao Brasil.
Neste momento, me sinto
extremamente envergonhada por ainda não ter aprendido português. Esse é o meu
próximo projeto. Estou muito feliz por estar aqui celebrando com vocês o Dia da
Mulher Negra Latina e Caribenha. Na Bahia, o Julho das Pretas. Estou muito
entusiasmada por estar aqui no Brasil, especialmente porque tenho acompanhado
os acontecimentos que vêm se desenvolvendo dentro do movimento das mulheres
negras.
Me parece que, neste
momento, o movimento das mulheres negras brasileiras representa o futuro do
planeta. As mulheres negras brasileiras têm uma história extensa de
envolvimento em lutas pela liberdade. Como tem sido simbolizado, por exemplo,
pela Irmandade da Boa Morte. O conceito de Boa Morte nos convida a
imaginar a imagem de um futuro melhor. Isso me leva a reconhecer as amplas
contribuições das mulheres negras no Brasil e na Bahia no contexto da cultura
religiosa.
Durante a minha visita,
fui honrada com a possibilidade de atender uma oficina oferecida na Irmandade e
também de passar um tempo na Roda de Samba da Dona Dalva. Tive a
oportunidade de aprender sobre o trabalho de Dona Dalva na preservação do samba
de roda. Recentemente ela recebeu um título de doutora honoris causa pela
Universidade Federal do Recôncavo Baiano.
Também tive a
oportunidade de me encontrar e conhecer a Ebomi Nice. Quero também
ressaltar que há alguns anos fui honrada com um convite para conhecer o
terreiro de Mãe Stella de Oxóssi e me encontrar com ela, que me disse
sobre seus esforços a fim de preservar a cultura e a religiosidade dentro das
tradições baianas e que as mulheres negras estão no centro dessas tradições.
Como foi dito por Dulce
Pereira, já venho ao Brasil desde 1997. Nunca vou me esquecer do encontro que
ocorreu em outubro daquele ano, em São Luís do Maranhão. Tive a oportunidade de
encontrar Luiza Bairros pela primeira vez. O espírito de Luiza Bairros
continua presente. Também encontrei pela primeira vez Vilma Reis e
tantas outras mulheres negras maravilhosas, as quais continuo a me encontrar
todas as vezes que venho ao Brasil.
A atual visita,
organizada pela professora doutora Ângela Figueiredo, foi um encontro
organizado em um contexto mais amplo, um curso em Cachoeira sobre o feminismo
negro decolonial. Quero agradecer a Ângela — toda vez que alguém chama por
ela, eu também olho — por me convidar para voltar a Bahia várias vezes. As
pessoas me perguntam se eu já fui ao Rio de Janeiro, a São Paulo. Não, mas eu
venho a Bahia de novo, de novo e de novo.
Menciono essa escola
porque ela reuniu estudantes negras do Brasil, América do Sul, África do Sul,
Canadá, Estados Unidos e Porto Rico. Ao fazê-lo, produziu concepções
importantes que poderiam não ter sido disponibilizadas se esse encontro não
tivesse ocorrido. Todas nós, que tivemos a oportunidade de estar aqui,
vindouras de outras partes do mundo, temos muita sorte de estar aqui neste
momento, onde o ativismo de mulheres negras está em um nível elevado e
pungente.
Como já foi dito e
reiterado várias vezes, o movimento social liderado por mulheres negras é o
movimento social mais importante do Brasil. Após o golpe antidemocrático que
resultou na deposição de Dilma Roussef, as mulheres negras criaram a melhor
esperança para este país. Muitas de nós, nos Estados Unidos, estamos
entusiasmadas acompanhando a Marcha das Mulheres Negras no
Brasil desde novembro de 2015. Nós continuamos a sentir as reverberações
dessa Marcha. Agora estamos no Julho das Pretas.
Este é um momento difícil
para o nosso planeta por vários motivos, mas, sobretudo, por termos uma guinada
à direita na Europa, nos Estados Unidos, na América dos Sul e especialmente no
Brasil. Não tenho nem como começar a explicar para vocês qual é o sentimento de
morar nos Estados Unidos onde Donald Trump é presidente. Mas não devemos nos
esquecer que, um dia após a posse de Trump, o movimento de mulheres levou para
Washington três vezes mais pessoas que o número que participou da cerimônia de
posse. Estima-se que mais de cinco milhões de pessoas participaram da Marcha
das Mulheres contra Trump no mundo, inclusive na Antártida.
A Marcha das Mulheres em
Washington foi liderada por mulheres negras, latinas, asiáticas, indígenas,
muçulmanas, e também mulheres brancas. Nos encontramos em Washington, por todo
o mundo e todos os países, para dizer que nós resistiremos. Todos os dias da
presidência de Trump, nós resistiremos. Nós resistiremos ao racismo, à exploração
capitalista, ao hetero patriarcado. Nós resistiremos ao preconceito contra o
Islã, ao preconceito contra as pessoas com deficiência. Nós defenderemos o meio
ambiente contra os insistentes ataques predatórios do capital. Aqui em
Salvador, no dia 25 de julho, dedicado às mulheres negras na América Latina e
no Caribe, afirmamos ainda de forma mais forte: com a força e o poder das
mulheres negras dessa região, nós resistiremos.
Sabemos que as
transformações históricas sempre começam com as pessoas. Essa é a mensagem do
movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter). Quando as vidas negras
realmente começarem a ter importância, isso significará que todas as vidas têm
importância. E podemos também dizer especificamente que, quando as vidas das
mulheres negras importam, então o mundo será transformado e teremos a certeza
de que todas as vidas importam.
As lutas das mulheres
negras estão conectadas com as lutas de pessoas oprimidas em todas as partes.
Com aquees que dizem “não” às políticas anti-imigratórias de Trump e à
construção de seu muro. Com aqueles que dizem “não” ao apartheid e ao muro que
separa Israel da ocupação Palestina. Com aqueles que dizem “não” ao racismo e à
misoginia na Colômbia. Com aqueles que dizem não ao sistema de castas na Índia.
Estamos em solidariedade com as mulheres Dalits em suas comunidades. Com
aquelas que dizem “não” à violência cotidiana, doméstica e íntima, que incide
sobre as mulheres negras e que, geralmente, são impostas a elas por homens
negros.
Finalmente as mulheres
negras têm sido reconhecidas pelo trabalho em manter as chamas da liberdade
acesas. Não é o tipo de liderança que visa dar visibilidade ou poder a
indivíduos, baseada em carisma, o individualismo masculino carismático. Mas é o
tipo de liderança que enfatiza as intervenções coletivas e apoia as comunidades
que estão em luta. A liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva.
Tanto no Brasil quanto
nos Estados Unidos, reconhecemos a importância de confrontar a violência de
estado. Enquanto o racismo está saturando todas as instituições — nas questões
da moradia, do emprego, da saúde e da educação — e pode ser mais dramaticamente
reconhecido nos sistemas policiais e punitivos. As mulheres negras têm liderado
ações contra a violência do estado, a violência policial e o racismo dentro do
sistema carcerário, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
Tenho falado sobre a
liderança das mulheres negras, mas eu deveria estar me referindo, na verdade, à
liderança feminista negra. É necessário enfatizar a condição da mulher negra na
perspectiva de gênero e de raça, reconhecendo que também está implicado nisso
classe, sexualidade e gênero, para além da convenção binária. Nosso foco está
nas mulheres negras empobrecidas, inclusive as que estão encarceradas, as
queer, as trans, as com deficiência. Mas também estamos conscientes que não
focamos na mulher negra a partir de um arcabouço separatista, porque as
mulheres negras também estão se engajando nas lutas de outros grupos. Às vezes
ao ponto de elas serem excluídas desses movimentos.
As mulheres negras estão
entre os grupos mais ignorados, mais subjugados e também os mais atacados deste
planeta. As mulheres negras estão entre os grupos mais sem liberdade do mundo.
Mas, ao mesmo tempo, as mulheres negras têm um trajetória histórica que
atravessa fronteiras geográficas e nacionais de sempre manter a esperança da
liberdade viva. As mulheres negras representam o que é não ter liberdade sendo,
ao mesmo tempo, as mais consistentes na tradição, que não foi rompida, da luta
pela liberdade, desde os tempos da colonização e escravidão até o presente.
Lembremo-nos de Rosa
Parks, que sempre enfatizou que queria ser lembrada como uma mulher poderia ser
livre, de tal forma que todas as pessoas pudessem ser livres. Lembremo-nos
de Lilian Ngoyi, líder do movimento anti-apartheid na África do Sul, que
disse, em 1956, entre as suas irmãs: “Agora que atingiram as mulheres, vocês
acionaram um trator e serão esmagados”.
Carolina Maria de
Jesus nos lembrou que a fome deveria nos levar a refletir sobre as
crianças e sobre o futuro muito antes de o conceito de interseccionalidade ser
utilizado. Lélia Gonzales insistiu que não só deveríamos compreender
a complexa inter-relação de raça, classe e gênero, mas que deveríamos ter em
mente as conexões entre os povos indígenas e os povos negros. Essa são as
lições que nós dos Estados Unidos precisamos aprender com a história do
feminismo negro no Brasil.
O que me leva a levantar
o próximo ponto. Existe, geralmente, a pressuposição de que a forma mais
avançada de feminismo negro é encontrada nos Estados Unidos. É verdade que há
muitas figuras norte-americanas reconhecidas pelo desenvolvimento do feminismo
negro. Isso não deveria se dar pelo entendimento de que nos Estados Unidos estamos
mais avançados. Essa é uma visão colonialista e imperialista. Na verdade, isso
ocorre porque as ideias, sejam elas conservadoras ou radicais, circulam com
mais facilidade a partir dos Estados Unidos do que as ideias que emanam do
Brasil. Não posso me levar tão a sério assim. A meu respeito, gosto sempre de
ressaltar que ninguém jamais conheceria meu nome se pessoas de todo o mundo,
inclusive do Brasil, não tivessem se organizado para exigir minha liberdade, no
princípio dos anos 70.
É verdade que cada uma
dessas viagens que fiz ao Brasil têm me trazido novas perspectivas. Desde a
primeira conferência de Lélia Gonzales, em 1997, no Maranhão, até a escola do
feminismo negro decolonial da qual participei agora. A partir disso, passo a
questionar o meu papel em trazer o conhecimento feminista negro para o Brasil.
Passei a perceber que nós, nos Estados Unidos, somos aquelas que precisamos
aprender com os conhecimentos e as perspectivas que são produzidas pela longa
história de luta feminista negra brasileira.
Precisamos aprender sobre
o poder feminista negro preservado dentro da tradição do Candomblé. Precisamos
aprender sobre os movimentos organizados por mulheres negras trabalhadoras
domésticas na Bahia e no Brasil. Tive o privilégio de conhecer Marinalva
Barbosa, que é a presidente do sindicato de trabalhadoras domésticas da Bahia.
Temos muito a aprender com a atividade dessas mulheres.
Nós ainda não conseguimos
nos organizar de uma maneira bem sucedida através de sindicatos dessa categoria
nos Estados Unidos, apesar do fato de que mulheres negras, trabalhadoras da
limpeza, terem organizado uma greve em 1881, em Atlanta, na Geórgia. Mesmo
apesar do fato de que nos anos 20 e 50 tenham havido esforços, que não tiveram
sucesso, de organizar sindicatos dessa categoria. Não é uma coincidência
que Alicia Garza seja uma das mulheres co-fundadoras do movimento
Vidas Negras Importam. Mesmo assim, ainda não temos um sindicato de
trabalhadoras domésticas.
Deixem-me compartilhar
com vocês algumas palavras sobre o complexo industrial carcerário. O Brasil tem
a quarta maior população carcerária do mundo, estou correta? Sendo a primeira
nos Estados Unidos e depois vêm Rússia e China. Os Estados Unidos está
aprisionando um quarto da população carcerária de todo o mundo. Se olharmos
para a população carcerária feminina, um terço está encarcerada nos Estados
Unidos.
Se tivéssemos tempo esta
noite, poderíamos falar mais aprofundadamente sobre como essa população
carcerária reflete o capitalismo global e como esse sistema negligencia as
necessidades humanas. Essas pessoas não tem acesso a moradia, educação, saúde
ou qualquer outro serviço que seja necessário para a sobrevivência. A rede
carcerária mundial constitui um vasto depósito onde pessoas consideradas
desimportantes são descartadas como lixo. Aquelas tidas como as menos
importantes são as pessoas negras, do sul global, muçulmanos e muçulmanas,
indígenas.
Quando nós trabalhamos e
lutamos contra a violência do estado manifestada através de práticas policiais
e de encarceramento, afirmamos que as vidas negras importam, que as vidas
indígenas importam. A professora Denise Carrascosa, aqui da UFBA, tem
liderado um projeto de mulheres dentro do sistema carcerário chamado “Corpos
indóceis e mentes livres”, um projeto entusiasmante que reune mulheres
encarceradas de tal forma que elas possam dramatizar as suas realidades, as
suas vidas.
Esses são os tipos de
projeto inovadores que produzem conhecimentos feministas sobre a relação entre
a liberdade e a falta de liberdade. Acabei de ser informada que a professora
Carrascosa tem sido impedida de entrar no complexo penintenciário feminino
porque ela se juntou a outras encarceradas para protestar contra o tratamento
punitivo aplicado a uma mulher que foi trancafiada, sendo-lhe negado o uso de medicamentos
pós-operatórios.
Em função da professora
Carrascosa ter levantado a sua voz, seu projeto, que já dura sete anos, foi
barrado. O que vocês farão em relação a essa situação? Quero sugerir que vocês
peçam a cada uma das pessoas aqui presentes para assinar uma petição exigindo
que esse projeto seja reincorporado. Sabemos que nos últimos dez anos houve um
aumento de 500% na taxa de encarceramento de mulheres e que dois terços de
todas as mulheres que estão encarceradas no Brasil são negras.
Isso me leva aos meus
últimos dois pontos. Um deles é a questão da reprodução da violência. Nós não
podemos excluir a violência doméstica e íntima das nossas teorias sobre a
violência do estado e institucional. Frequentemente, agimos como se uma não
tivesse relação com a outra e que, se as mulheres negras são vítimas dessa
violência cotidiana praticada por seus maridos e namorados, isso significa que
os homens e garotos negros são violentos. Como podemos refletir sobre isso?
Nós precisamos nos
perguntar qual é a fonte dessa violência que prejudica e fere tantas mulheres
negras. Qual é a relação dessa violência com a violência policial e do sistema
carcerário? Se essa violência do indivíduo está conectada com a violência
institucional e do estado, isso significa que não conseguiremos erradicar a
violência doméstica enviando aqueles que a praticam ao sistema carcerário. Se
desejamos erradicar as formas mais endêmicas de violência do indivíduo da face
da Terra, então devemos eliminar também as fontes institucionais de violência.
Este é o chamado para a abolição do encarceramento como a forma dominante de
punição para pensarmos novas formas de abordagem para aqueles que são
violentados. Este é o chamado do feminismo negro para formas de justiça
decoloniais.
Meu último ponto diz
respeito aos contantes esforços para conter nossa resistência. Quando nós
resistimos, as instituições dominantes e, sobretudo, o estado, tentam conter a
nossa resistência. Querem transformar as nossas lutas, em estratégias de
consolidação do estado. O movimento pelos direitos civis é agora é reivindicado
pelo estado como central em suas narrativas sobre a democracia. Mas o movimento
Vidas Negras Importam, principalmente na era Trump, é considerado um insulto.
No Brasil, agora que o
mito da democracia racial foi totalmente exposto, a pergunta que se apresenta é
se o movimento de resistência das mulheres negras pode ser apropriado.
Afirmamos que, na medida em que nos levantamos contra o racismo, nós não
reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao
hetero-patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é
profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se dizemos não à pobreza, nós não
queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista que valoriza mais o
lucro que seres humanos.
Se reconhecermos que
aqueles que queriam resolver a questão da escravidão buscavam formas mais
humanas de escravização, nós estaremos utilizando a lógica do racismo.
Reconhecemos que a reivindicação da reforma do sistema policial e da reforma do
sistema carcerário apenas mantêm as estruturas racistas ao mesmo tempo em que
finge se importar com as questões raciais.
É por isso que dizemos
não ao feminismo carcerário e sim ao feminismo abolicionista. É por isso que
nós convocamos essa solidariedade para além das fronteiras nacionais e
ressaltamos que o feminismo radical negro decolonial reconhece as nossas
profundas conexões, mesmo a medida em que reconhecemos também nossas
contradições.
A luta pelo acesso à água
no Quilombo Rio dos Macacos vem sendo rotulada como “terrorista”.
Tenho aqui em minhas mãos um apelo que vêm do Quilombo Rio dos Macacos
relacionada aos seus direitos humanos de acesso à terra e à água que lerei após
o evento. Mas o que eu quero dizer é que as lutas que acontecem dentro dessa
comunidade estão conectadas às reivindicações para a proteção da água por
populações indígenas contra o veneno trazido pelos dutos de petróleo.
Essas lutas estão
conectadas também aos esforços que ocorrem em Flynn, Michigan, em expor o
envenenamento das águas nas comunidades negras. Essas lutas também estão
conectadas com as das comunidades palestinas, engajadas em defender as suas
reservas de água, alvo constante das forças militares de Israel. Somente
através da solidariedade e da luta, nós poderemos preservar o nosso acesso a
água.
Quilombolas, presente!
Finalmente, quero
salientar a minha alegria em estar aqui com vocês no Brasil, Bahia, Salvador,
celebrando o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Mulheres negras
representam o futuro. Porque mulheres negras representam uma possibilidade real
de esperança na liberdade.