sexta-feira, 24 de março de 2017

MUSEU DA FOTOGRAFIA FORTALEZA

Em recente entrevista, o fotógrafo Sebastião Salgado afirmou que a fotografia está com seus dias contados, devendo desaparecer nos próximos 20 ou 30 anos. Disse ele: "Eu não acredito que a fotografia vá viver mais de 20 ou 30 anos. Vamos passar para outra coisa".  Salgado ainda disse: "A fotografia está acabando porque o que vemos no celular não é a fotografia. A fotografia precisa se materializar, precisa ser impressa, vista, tocada, como quando os pais faziam antes com os álbuns de fotos de seus filhos. Estamos em um processo de eliminação da fotografia. Hoje temos imagens, mas não fotografias", concluiu.

É muito difícil discordar de Sebastião Salgado, tendo em vista ser ele um dos homens que mais entende de fotografia nesse mundo. Contudo, esperamos que sua “profecia” demore muito tempo para se realizar. O bom mesmo seria que ela jamais se efetivasse! Seja como for, a fotografia, ao alcançar status de arte, passou a ocupar as salas dos museus mundo afora. Curioso, no entanto, pelo menos no Brasil, era a ausência de mais museus que fossem dedicados somente à fotografia. Parece-nos que existem apenas dois no Brasil. O primeiro está em Curitiba. Finalmente, essa lacuna está sendo preenchida, pois acaba de ser inaugurado (em março, de 2017), em Fortaleza, mais um museu dedicado integralmente à fotografia. Trata-se do Museu da Fotografia Fortaleza.


Foto de divulgação: Celso Oliveira

O Museu da Fotografia Fortaleza é um museu privado, idealizado pelos empresários e colecionadores Paula e Silvio Frota. O referido museu abre com uma exposição contendo 440 fotografias selecionadas entres as mais de 2 mil imagens colecionadas pelo casal. Entre tantos fotógrafos, o museu possui obras de Chico Albuquerque, Cartier-Bresson, Steve McCurry e Cindy Sherman. A curadoria da exposição que inaugura o Museu da Fotografia Fortaleza ficou a cargo de Ivo Mesquita. Acerca da decisão de criar o Museu, os colecionadores afirmaram que: “Não era justo nós termos acesso a todas essas obras e o resto da população não” (Estadão, 20/03/2017). De uma forma ou de outra, sem entrarmos no mérito da decisão de se criar o referido museu, “o resto” da população da cidade de Fortaleza agradece.

O Museu da Fotografia Fortaleza tem seu acervo disponibilizado em três andares. O primeiro andar do museu está dedicado a receber exposições temporárias. O segundo andar abrigará as exposições permanentes, enquanto o terceiro comportará fotografias específicas das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Além dos espaços reservados para as exposições, o prédio conta ainda com livraria, auditório e café.

Os criadores do museu não desejam que o museu fique parado onde está, mas que "ande" e leve educação, cultura e o amor pela fotografia para as comunidades periféricas da cidade, bem como para o interior do Estado. A iniciativa do casal Frota é um grande presente não apenas para a cidade de Fortaleza, mas uma homenagem aos fotógrafos, estudiosos e amantes da fotografia como um todo. Ao contrário do que afirmou Sebastião Salgado, Frota não crê que a fotografia esteja com os dias contados. Para ele o que se tem é a fotografia em processo de mutação, mas não em vias de desaparecer. A discussão é longa e apenas o tempo dirá que rumos a fotografia seguirá. Enquanto isso, nós, fotógrafos do mundo, continuemos a fotografar e, vamos ao museu!


Serviço:

Museu da Fotografia Fortaleza
Rua Frederico Borges, 545
Bairro Varjota – Fortaleza – Ceará
Telefone: (85) 3017 - 3661

quarta-feira, 15 de março de 2017

O DISCURSO DE MERYL STREEP NO GLOBO DE OURO


Em épocas de  "pós-verdade", "verdades alternativas" e outros seres medonhos; muitos discursos estão sendo jogados por terra, ignorados e  vilipendiados por serem discursos indesejáveis aos ouvidos das castas dominantes mundo afora. Nesse contexto, a chegada ao poder de políticos respaldados por discursos extremistas já se mostra como grande preocupação e ameaça aos direitos civis no século XXI. Como forma de enfrentamento do monstro em crescimento (já vimos no que isso deu na década de 40), a palavra, como forma de resistência, precisa ser exercitada cada vez mais.

 Spivak (2014) pergunta: "Pode o subalterno falar?". Certamente que sim. Contudo, muitos projetos políticos em curso objetivam a sujeição e o silêncio dos mais pobres e das minorias; bem como de todos aqueles que se opõem ao rolo compressor do sistema de exclusão imposto pelo poderio econômico mundial. Consciente da necessidade de se combater ações desse tipo ( e consciente da própria função do artista), a atriz Meryl Streep tem sido uma das vozes a desafiar o coro dos contentes da discriminação, do preconceito e do atraso.

Abaixo, o discurso que a atriz proferiu na cerimônia do Globo de Ouro, de 2017.

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Muito obrigada, muito obrigada. Sentem-se, por favor. Obrigada. Amo vocês. Vocês vão ter que me desculpar. Perdi a voz gritando e me lamentando no fim de semana. E perdi a cabeça em algum momento neste ano. Então terei que ler.

Obrigada à Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood. Para seguir linha do que disse Hugh Laurie, nós, todos os presentes, pertencemos a um segmento vilipendiado da população. Pensem nisso: Hollywood. Estrangeiros. E a imprensa. Mas quem somos nós? O que é Hollywood? É um grupo de gente que vem de todas as partes. Eu nasci, cresci e me eduquei nas escolas públicas de Nova Jersey. Viola [Davis] nasceu numa cabana da Carolina do Sul e cresceu em Central Falls, Long Island. Sarah Paulson nasceu na Flórida e foi criada por sua mãe solteira no Brooklyn. Sarah Jessica Parker era uma de sete ou oito filhos em Ohio. Amy Adams nasceu na Itália, e Natalie Portman, em Jerusalém. Onde estão suas certidões de nascimento? E a linda Ruth Negga nasceu na Etiópia, cresceu em Londres. Não, na Irlanda, me parece. Está aqui indicada por fazer o papel de uma garota de um povoado da Virgínia. Ryan Gosling, como todas as pessoas mais amáveis, é canadense. E Dev Patel nasceu no Quênia, cresceu em Londres e está aqui por fazer o papel de um indiano que vive na Tasmânia…

De modo que Hollywood está cheia de estrangeiros e forasteiros, e se querem expulsar todos nós vão ficar sem nada para ver além de futebol americano e artes marciais mistas, que NÃO são artes… Me deram três segundos para dizer isto… O único trabalho de um ator é entrar na vida de pessoas que são diferentes de nós e deixar você sentir como é isso. E houve neste ano muitas atuações poderosas que conseguiram justamente isso. Um trabalho assombroso e feito com compaixão.

Mas houve uma atuação neste ano que me impactou, que mexeu com o meu coração. Não por ter sido boa, não tinha nada de boa, mas era eficaz e funcionou. Fez a plateia a que se destinava rir e mostrar os dentes. Foi aquele momento em que a pessoa que pedia para se sentar na cadeira mais respeitável do nosso país imitou um repórter deficiente. Alguém a quem ele superava em termos de privilégio, poder e capacidade de se defender. Isso me partiu o coração. Ainda não consigo tirar aquilo da cabeça, porque não era um filme. Era a vida real.

E esse instinto de humilhar, quando modelado por alguém na plataforma pública, por alguém poderoso, se filtra na vida de todo mundo, porque de certa forma dá permissão para que outras pessoas façam o mesmo. Desrespeito atrai desrespeito. A violência incita a mais violência. Quando os poderosos usam sua posição para abusar de outros, todos perdemos…

Isto me leva à imprensa. Precisamos que a imprensa com princípios exija responsabilidade do poder, que o chame às falas por cada atrocidade que cometer. Por isso, os fundadores do nosso país protegeram a imprensa e suas liberdades na Constituição. Assim, só quero pedir à rica Associação da Imprensa Estrangeira em Hollywood e a todos que pertencemos a esta comunidade que se unam a mim no apoio ao comitê para a proteção dos jornalistas. Porque vamos precisar deles daqui por diante. E eles vão precisar de nos para salvaguardar a verdade.
Só mais uma coisa. Certa vez, eu estava parada num set de filmagem me queixando de alguma coisa, horas extras, algo assim. Tommy Lee Jones me disse: “Não é um privilégio, Meryl, simplesmente ser ator?”. Sim, é mesmo. E precisamos recordar uns aos outros sobre o privilégio e a responsabilidade do ato da empatia. Devemos estar orgulhosos do trabalho que Hollywood homenageia nesta noite.

Como minha querida amiga, a recém-falecida Princesa Leia, me disse certa vez: “Pegue seu coração partido e o transforme em arte”. Obrigada.

Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/09/cultura/1483935921_665878.html


Meryl Streep discursa no Globo de Ouro, de 2017



NO ORIGINAL 

Please sit down. Thank you. I love you all. You’ll have to forgive me. I’ve lost my voice in screaming and lamentation this weekend. And I have lost my mind sometime earlier this year, so I have to read.
Thank you, Hollywood Foreign Press. Just to pick up on what Hugh Laurie said: You and all of us in this room really belong to the most vilified segments in American society right now. Think about it: Hollywood, foreigners and the press.
But who are we, and what is Hollywood anyway? It’s just a bunch of people from other places. I was born and raised and educated in the public schools of New Jersey. Viola was born in a sharecropper’s cabin in South Carolina, came up in Central Falls, Rhode Island; Sarah Paulson was born in Florida, raised by a single mom in Brooklyn. Sarah Jessica Parker was one of seven or eight kids in Ohio. Amy Adams was born in Vicenza, Italy. And Natalie Portman was born in Jerusalem. Where are their birth certificates? And the beautiful Ruth Negga was born in Addis Ababa, Ethiopia, raised in London — no, in Ireland I do believe, and she’s here nominated for playing a girl in small-town Virginia.
Ryan Gosling, like all of the nicest people, is Canadian, and Dev Patel was born in Kenya, raised in London, and is here playing an Indian raised in Tasmania. So Hollywood is crawling with outsiders and foreigners. And if we kick them all out you’ll have nothing to watch but football and mixed martial arts, which are not the arts.
They gave me three seconds to say this, so: An actor’s only job is to enter the lives of people who are different from us, and let you feel what that feels like. And there were many, many, many powerful performances this year that did exactly that. Breathtaking, compassionate work.
But there was one performance this year that stunned me. It sank its hooks in my heart. Not because it was good; there was nothing good about it. But it was effective and it did its job. It made its intended audience laugh, and show their teeth. It was that moment when the person asking to sit in the most respected seat in our country imitated a disabled reporter. Someone he outranked in privilege, power and the capacity to fight back. It kind of broke my heart when I saw it, and I still can’t get it out of my head, because it wasn’t in a movie. It was real life. And this instinct to humiliate, when it’s modeled by someone in the public platform, by someone powerful, it filters down into everybody’s life, because it kinda gives permission for other people to do the same thing. Disrespect invites disrespect, violence incites violence. And when the powerful use their position to bully others we all lose. O.K., go on with it.
O.K., this brings me to the press. We need the principled press to hold power to account, to call him on the carpet for every outrage. That’s why our founders enshrined the press and its freedoms in the Constitution. So I only ask the famously well-heeled Hollywood Foreign Press and all of us in our community to join me in supporting the Committee to Protect Journalists, because we’re gonna need them going forward, and they’ll need us to safeguard the truth.
One more thing: Once, when I was standing around on the set one day, whining about something — you know we were gonna work through supper or the long hours or whatever, Tommy Lee Jones said to me, “Isn’t it such a privilege, Meryl, just to be an actor?” Yeah, it is, and we have to remind each other of the privilege and the responsibility of the act of empathy. We should all be proud of the work Hollywood honors here tonight.

As my friend, the dear departed Princess Leia, said to me once, take your broken heart, make it into art.

quarta-feira, 8 de março de 2017

POR UM MUNDO MAIS FEMININO - FELIZ DIA DA MULHER!



                                                     Para Geórgia e Clarice, mulheres que me encantam!

                                                     Felicidades sempre!
                                               



domingo, 5 de março de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE A VAIDADE NA VIDA ACADÊMICA

As sociedades que não se permitem discutir os problemas que lhe vão no âmago acabam por se reduzirem a caricaturas bizarras daquilo que uma sociedade minimamente decente poderia ser. Tal falta de questionamento abunda em todos os setores da sociedade brasileira. O problema é ainda maior quando, em meio a tudo isso, a mediocridade, o autoritarismo e a vaidade dos sujeitos sociais envolvidos contribuem para  que pouco ou quase nada se mostre como novo no front. Assim, quando a "maldição da vaidade" se infla no seio da vida acadêmica, por exemplo, torna-se muito difícil vislumbrar o que daí pode resultar. 

Sobre essa questão, reproduzimos aqui, a importante reflexão de Rosana Pinheiro-Machado acerca da vaidade na vida acadêmica. O texto de Pinheiro-Machado está publicado na revista Carta Capital, merecendo a recorrente atenção de todos aqueles interessados em uma universidade melhor.

Boa leitura!
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Da carta Capital
por Rosana Pinheiro-Machado — publicado 24/02/2016 03h37, última modificação 24/02/2016 12h17

Combater o mito da genialidade, a perversidade dos pequenos poderes e os "donos de Foucault" é fundamental para termos uma universidade melhor

A vaidade intelectual marca a vida acadêmica. Por trás do ego inflado, há uma máquina nefasta, marcada por brigas de núcleos, seitas, grosserias, humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas. Mas em que medida nós mesmos não estamos perpetuando esse modus operandi para sobreviver no sistema? Poderíamos começar esse exercício auto reflexivo nos perguntando: estamos dividindo nossos colegas entre os “fracos” (ou os medíocres) e os “fodas” (“o cara é bom”).
As fronteiras entre fracos e 'fodas' começam nas bolsas de iniciação científica da graduação. No novo status de bolsista, o aluno começa a mudar a sua linguagem. Sem discernimento, brigas de orientadores são reproduzidas. Há brigas de todos os tipos: pessoais (aquele casal que se pegava nos anos 1970 e até hoje briga nos corredores), teóricas (marxistas para cá; weberianos para lá) e disciplinares (antropólogos que acham sociólogos rasos generalistas, na mesma proporção em que sociólogos acham antropólogos bichos estranhos que falam de si mesmos).
A entrada no mestrado, no doutorado e a volta do doutorado sanduíches vão demarcando novos status, o que se alia a uma fase da vida em que mudar o mundo já não é tão importante quanto publicar um artigo em revista qualis A1 (que quase ninguém vai ler).
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dizíamos que quando alguém entrava no mestrado, trocava a mochila por pasta de couro. A linguagem, a vestimenta e o ethos mudam gradualmente. E essa mudança pode ser positiva, desde que acompanhada por maior crítica ao sistema e maior autocrítica – e não o contrário.
A formação de um acadêmico passa por uma verdadeira batalha interna em que ele precisa ser um gênio. As consequências dessa postura podem ser trágicas, desdobrando-se em dois possíveis cenários igualmente predadores: a destruição do colega e a destruição de si próprio.
O primeiro cenário engloba vários tipos de pessoas (1) aqueles que migraram para uma área completamente diferente na pós-graduação; (2) os que retornaram à academia depois de um longo tempo; (3) os alunos de origem menos privilegiada; (4) ou que têm a autoestima baixa ou são tímidos. Há uma grande chance destas pessoas serem trituradas por não dominarem o ethos local e tachadas de “fracos”.
Os seminários e as exposições orais são marcados pela performance: coloca-se a mão no queixo, descabela-se um pouco, olha-se para cima, faz-se um silêncio charmoso acompanhado por um impactante “ãaaahhh”, que geralmente termina com um “enfim” (que não era, de fato, um “enfim”). Muitos alunos se sentem oprimidos nesse contexto de pouca objetividade da sala de aula. Eles acreditam na genialidade daqueles alunos que dominaram a técnica da exposição de conceitos.
Hoje, como professora, tenho preocupações mais sérias como estes alunos que acreditam que os colegas são brilhantes. Muitos deles desenvolvem depressão, acreditam em sua inferioridade, abandonam o curso e não é raro a tentativa de suicídio como resultado de um ego anulado e destruído em um ambiente de pressão, que deveria ser construtivo e não destrutivo.
Mas o opressor, o “foda”, também sofre. Todo aquele que se acha “bom” sabe que, bem lá no fundo, não é bem assim. Isso pode ser igualmente destrutivo. É comum que uma pessoa que sustentou seu personagem por muitos anos, chegue na hora de escrever e bloqueie.
Imagine a pressão de alguém que acreditou a vida toda que era foda e agora se encontra frente a frente com seu maior inimigo: a folha em branco do Word. É “a hora do vâmo vê”. O aluno não consegue escrever, entra em depressão, o que pode resultar no abandono da tese. Esse aluno também é vítima de um sistema que reproduziu sem saber; é vítima de seu próprio personagem que lhe impõe uma pressão interna brutal.
No fim das contas, não é raro que o “fraco” seja o cavalinho que saiu atrasado e faça seu trabalho com modéstia e sucesso, ao passo que o “foda” não termine o trabalho. Ademais, se lermos o TCC, dissertação ou tese do “fraco” e do “foda”, chegaremos à conclusão de que eles são muito parecidos.
A gradação entre alunos é muito menor do que se imagina. Gênios são raros. Enroladores se multiplicam. Soar inteligente é fácil (é apenas uma técnica e não uma capacidade inata), difícil é ter algo objetivo e relevante socialmente a dizer.
Ser simples e objetivo nem sempre é fácil em uma tradição “inspirada” (para não dizer colonizada) na erudição francesa que, na conjuntura da França, faz todo o sentido, mas não necessariamente no Brasil, onde somos um país composto majoritariamente por pessoas despossuídas de capitais diversos.
É preciso barrar imediatamente este sistema. A função da universidade não é anular egos, mas construí-los. Se não dermos um basta a esse modelo a continuidade desta carreira só piora. Criam-se anti-professores que humilham alunos em sala de aula, reunião de pesquisa e bancas. Anti-professores coagem para serem citados e abusam moral (e até sexualmente) de seus subalternos.
Anti-professores não estimulam o pensamento criativo: por que não Marx e Weber? Anti-professores acreditam em lattes e têm prazer com a possibilidade de dar um parecer anônimo, onde a covardia pode rolar às soltas.
O dono do Foucault
Uma vez, na graduação, aos 19 anos, eu passei dias lendo um texto de Foucault e me arrisquei a fazer comparações. Um professor, que era o dono do Foucault, me disse: “não é assim para citar Foucault”.
Sua atitude antipedagógica, anti-autônoma e anti-criativa, me fez deixar esse autor de lado por muitos anos até o dia em que eu tive que assumir a lecture “Foucault” em meu atual emprego. Corrigindo um ensaio, eu quase disse a um aluno, que fazia um uso superficial do conceito de discurso, “não é bem assim...”.
Seria automático reproduzir os mecanismos que me podaram. É a vingança do oprimido. A única forma de cortamos isso é por meio da autocrítica constante. É preciso apontar superficialidade, mas isso deve ser um convite ao aprofundamento. Esquece-se facilmente que, em uma universidade, o compromisso primordial do professor é pedagógico com seus alunos, e não narcisista consigo mesmo.
Quais os valores que imperam na academia? Precisamos menos de enrolação, frases de efeitos, jogo de palavras, textos longos e desconexos, frases imensas, “donos de Foucault”. Se quisermos que o conhecimento seja um caminho à autonomia, precisamos de mais liberdade, criatividade, objetividade, simplicidade, solidariedade e humildade.
O dia em que eu entendi que a vida acadêmica é composta por trabalho duro e não genialidade, eu tirei um peso imenso de mim. Aprendi a me levar menos a sério. Meus artigos rejeitados e concursos que fiquei entre as últimas colocações não me doem nem um pouquinho. Quando o valor que impera é a genialidade, cria-se uma “ilusão autobiográfica” linear e coerente, em que o fracasso é colocado embaixo do tapete. É preciso desconstruir o tabu que existe em torno da rejeição.
Como professora, posso afirmar que o número de alunos que choraram em meu escritório é maior do que os que se dizem felizes. A vida acadêmica não precisa ser essa máquina trituradora de pressões múltiplas. Ela pode ser simples, mas isso só acontece quando abandonamos o mito da genialidade, cortamos as seitas acadêmicas e construímos alianças colaborativas.
Nós mesmos criamos a nossa trajetória. Em um mundo em que invejas andam às soltas em um sistema de aparências, é preciso acreditar na honestidade e na seriedade que reside em nossas pesquisas.
Transformação
Tudo depende em quem queremos nos espelhar. A perversidade dos pequenos poderes é apenas uma parte da história. Minha própria trajetória como aluna foi marcada por orientadoras e orientadores generosos que me deram liberdade única e nunca me pediram nada em troca.
Assim como conheci muitos colegas que se tornaram pessoas amargas (e eternamente em busca da fama entre meia dúzia), também tive muitos colegas que hoje possuem uma atitude generosa, engajada e encorajadora em relação aos seus alunos.
Vaidade pessoal, casos de fraude em concursos e seleções de mestrado e doutorado são apenas uma parte da história da academia brasileira. Tem outra parte que versa sobre criatividade e liberdade que nenhum outro lugar do mundo tem igual. E essa criatividade, somada à colaboração, que precisa ser explorada, e não podada.
Hoje, o Brasil tem um dos cenários mais animadores do mundo. Há uma nova geração de cotistas ou bolsistas Prouni e Fies, que veem a universidade com olhos críticos, que desafiam a supremacia das camadas médias brancas que se perpetuavam nas universidades e desconstroem os paradigmas da meritocracia.
Soma-se a isso o frescor político dos corredores das universidades no pós-junho e o movimento feminista que só cresce. Uma geração questionadora da autoridade, cansada dos velhos paradigmas. É para esta geração que eu deixo um apelo: não troquem o sonho de mudar o mundo pela pasta de couro em cima do muro.