domingo, 18 de outubro de 2020

O ignorante feliz

 

Ignorante é aquela pessoa que, por inúmeras razões, ignora/desconhece algo ou alguma coisa. Nossa crônica, no entanto, não pretende discorrer sobre esses homens e mulheres que, mesmo desconhecendo muita coisa, não podem jamais serem colocados na categoria de “estúpidos”, pois conhecem outros mundos e possuem uma sapiência que não se enquadra naquilo que a educação formal compreende como conhecimento. Esse tipo de ignorante não guarda aproximações com o ignorante feliz.

O ignorante feliz é aquele tipo de gente que tem orgulho da sua estultice. Em meio a uma pandemia, por exemplo, mesmo tendo-se a orientação de ficar em casa em quarentena, o ignorante feliz decide que deverá sair em carreata em defesa do indefensável. O ignorante feliz, como dizem os norte-americanos, é um loser, ou seja, um perdedor, um fracassado, mesmo que seja rico, muito rico. O ignorante feliz se orgulha de jamais ter lido um livro. Informar-se por meio de aplicativos de mensagens já é o suficiente para ele, não se importando se são mensagens verdadeiras ou falsas. O importante mesmo é passá-las adiante. O ignorante feliz acha que escola, praia, jornal, macaco, carro e livro é tudo a mesma coisa. Para ele, tudo isso é coisa de esquerdista. E grita a plenos pulmões: “nossa bandeira jamais será vermelha”. A quem achar ruim, grita mais forte: “vá pra Cuba!”. Ao pobre vocabulário do ignorante feliz a “elite” predatória brasileira adicionou lexias como “petralha, esquerdopata, comunista, ideologia de gênero, mamadeira de piroca” etc, as quais são regurgitadas pelo ignorante feliz toda vez que sai do curral, para uma voltinha na cidade.

O ignorante feliz ainda é do tempo em que se seguiam gurus. Rasputin se remexe na tumba. O ignorante feliz sabe que há um mínimo que precisa saber, para compreender por qual razão ele é um ignorante. O ignorante feliz adora ver capas de livros de astrólogos e gurus. O ignorante feliz, sim, é parente muito próximo do idiota útil. Quando juntos, constituem o que se chama de imbecil coletivo. O ignorante feliz acha que é rico, quando está apenas sendo usado pelo ignorante feliz rico. Mas ele, sorrindo amarelo, finge que não sabe.

Para o ignorante feliz, “bandido bom é bandido morto”. Bandido preto e pobre, claro. O ignorante feliz não sabe, e tem raiva de quem sabe, quem é Chomsky. O ignorante feliz jamais lerá O mestre ignorante, de Jacque Rancière. O ignorante feliz não sabe como as democracias morrem. O ignorante feliz não soube da morte do autor. Foda-se! diria ele. O ignorante feliz se autodenomina um “cidadão de bem”. É, como diria Belchior, um cidadão comum, como esses que se vê na rua. Fala de negócios e vê show de mulher nua. De dia, o ignorante feliz é defensor da tradicional família brasileira e dos bons costumes (seja lá o que isso queira dizer), mas à noite “todos os gatos são pardos”. O ignorante feliz rosna pelo direito de possuir uma arma, quando não consegue pagar nem as próprias contas. O ignorante feliz põe sua camiseta da seleção brasileira para ver lives de cantores sertanejos que, assim como ele, acreditam em mitos e em messias com armas na mão.

O ignorante feliz é um ser atormentado que, por suas observáveis aflições, poderia muito bem constar no tríptico de Bosch, o Jardim das Delícias Terrenas ou no Inferno, da Divina Comédia, de Dante. O ignorante feliz acredita que as instituições democráticas devem ruir, para que se instale a democracia. O ignorante feliz é intolerante, preconceituoso, misógino, xenófobo, homofóbico, velhofóbico e contra tudo o mais que não caiba nas limitações da sua cabecinha de bola de gude, controlada remotamente por robôs e trolls. O ignorante feliz é feliz no seu vazio existencial.


sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Eis o candidato na praça outra vez

 

Para o bem de todos e felicidade geral da nação já está aberta a temporada de campanha eleitoral. Infelizmente, por causa da pandemia, haverá uma diminuição considerável de apertos de mão, crianças nos braços e tapinhas nas costas, entre outras demonstrações de carinho e calor humano. A ausência total ou a diminuição destes afagos pode aumentar a “fadiga da pandemia”, pois, como o eleitor vai conseguir viver sem tais afetos, não é mesmo?

As cidades, por sua vez, já sentem os efeitos das campanhas. Não importa por onde se passe, lá estão eles, os santinhos dos candidatos e candidatas a inundar com suas retóricas vazias, nomes exóticos e imagens bizarras; os canteiros centrais das avenidas, bueiros, para-brisas de automóveis, caixas de correio e frestas de desavisadas janelas.

Uma olhada rápida na lista de candidatos e candidatas constata que, entre tantos nomes, muitos são velhos conhecidos de guerra, outros tantos são novatos e outros são só sem- noção mesmo. Os tipos são os mais variados possíveis. Tem-se, por exemplo, a “dona fulana do postinho”, “sargento beltrano”, “pastor sicrano”, “o lindão da padaria”, “a amiga de sempre” etc. Em meio a tamanha diversidade, há aqueles candidatos que são reconhecidos por sua capacidade de hibernar, despertando somente a cada quatro anos, quando lembram que o povo existe e que suas contas bancárias precisam ser irrigadas. O pior dessa história é quando o eleitor ignora aqueles que representam e defendem sua comunidade, optando por candidatos que, passada a eleição, sumirão como num passe de mágica.

O candidato é um espécime curioso, sempre atento àquilo que lhe interessa. Seus movimentos são calculados e seu discurso costuma ser bem articulado, moldado em um número limitado de palavras que podem ser arranjadas para discorrer, bem ou mal, sobre qualquer que seja a temática. Quando não consegue responder sobre um determinado assunto, o candidato responde sobre outro, colocando em prática suas aulas de coaching e media training. Ao caminhar, o candidato procura apresentar uma postura firme, não necessariamente com barriga pra dentro e peito pra fora, mas tentando demonstrar liderança, empoderamento e altivez. Como nem sempre consegue, o candidato acaba andando assim, de viés.

Em época de campanha eleitoral o candidato não conhece limitações; anda por toda a cidade, sobe e desce morro, invade ônibus, trem e metrô, distribuindo sorrisos e santinhos a tudo aquilo que se mova. E se o eleitor está na feira, praia, mercado, igreja ou bar; lá também estará a figura onipresente do candidato. Entre tantos tipos, um dos mais comuns é o “Candidato caô caô”, como na canção de Walter Meninão e Pedro Butina, que em tempos de eleição sobe o morro sem gravata, bebe cachaça na vendinha, toma água da chuva, fuma bagulho e usa lata de goiabada como prato. Quando se vê isso, dizem os poetas, não resta dúvida, é mais um candidato às próximas eleições.

Assim, conforme dados do TSE, são 750 mil candidatos tentando uma vaga para os cargos de prefeito e vereador em todo o país, disputando o voto de 147, 9 milhões de eleitores. Nas eleições de 2020 serão eleitos 5.568 prefeitos, com seus respectivos vice-prefeitos e 57.942 vereadores. O eleitor que se proteja, pois os candidatos já estão na praça outra vez.


quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Aqueles que queimam livros

 

Quando a pandemia nos empurrou para o isolamento, passamos a ouvir de forma recorrente a pergunta: “ao término da pandemia, sairemos pessoas melhores ou piores?”. Chegados aos sete meses de pandemia, com um milhão de mortos no mundo todo, sendo quase 150 mil somente no Brasil, percebe-se que, se havia alguma dúvida de como sairíamos da quarentena, a resposta já nos parece bastante óbvia, com a normalização do  absurdo, a saber, praias cheias, shoppings e bares lotados, ruas e praças movimentadas. E assim, em nome do grande deus mercado, fomos apresentados ao “novo normal”, pois a economia não pode parar. Se morreu, morreu porque que tinha que morrer, diriam alguns cidadãos e cidadãs de bem.

Os que defendem coisas desse tipo são, na maioria das vezes, pessoas que também costumam bradar dizeres em defesa da família tradicional brasileira, professar alguma fé e responder com a palavra “gratidão” a cada mensagem que recebem. Algumas vezes, protagonizam cenas que fariam corar de horror, vergonha e repulsa até um frade de pedra, estejam tais pessoas em carros conversíveis, ruas ermas ou restaurantes bregas e caros. O cavalo-de-pau (ou seria aquele grande acordo nacional?) que deram no Brasil, colocou-o “Titanic” de cara para um abismo que, mais cedo ou mais tarde, o engolirá. O que se vê, no entanto, não é nada mais nada menos que o resultado de trezentos anos de escravização, criminalização dos menos favorecidos socialmente e do projeto de destruição da educação brasileira.

Assim, a cada novo dia somos tomados de indignação e espanto diante do caos que se alastra por aqui, transformando o Brasil em um arremedo de nação, numa Sucupira, uma Bruzundanga fascistóide. Das inúmeras bizarrices da semana, nos chamou a atenção o vídeo que mostra dois idosos queimando os livros do escritor Paulo Coelho na churrasqueira de casa. Ao ser questionada pela pessoa que filma acerca da razão do ato, a velha senhora diz que ele, Paulo Coelho, teria pedido “pra não comprarem os produtos do Brasil, lá fora falando mal do Brasil. Agora eu estou aqui queimando os livros dele, miserável”, disse. E, parafraseando Darcy Ribeiro, nos perguntamos: como o Brasil deu no que deu?

Inaceitável, por seu caráter bárbaro, a atitude dos idosos é pra lá de criminosa em um país carente de livros e leitores, sendo, além disso, perigosa. Na história da humanidade, já vimos livros serem queimados, e sabemos exatamente no que deu. O ato hediondo protagonizado pelo casal de velhos nos remete à narrativa Fahrenheit 451, romance distópico de Ray Bradbury (1920-2012), lançado no ano de 1953, cujo cenário é um tempo futuro no qual não se admite que as pessoas tenham suas próprias opiniões as quais, para o Estado, são hedonistas e antissociais. Nada de “Defund Lukashenko”, por exemplo. Pensamento crítico? De jeito nenhum. Logo, nada de livros. Se encontrados, arderão no fogo.


A incivilidade do ato protagonizado pelo casal de idosos nos lembra George Steiner (1929-2020) quando na obra Aqueles que queimam livros (2017), traduzida por Pedro Fonseca e publicada no Brasil pela editora Âyiné, diz:

 

Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem. Seu poder é incalculável. Precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores. Podem exaltar ou aviltar; seduzir ou enojar; estimular à virtude ou à barbárie; acentuar a sensibilidade ou banaliza-la”, pois os livros, continua Steiner, “são a chave de acesso para nos tornarmos melhores. (STEINER, 2017.p.15)

 

Assim sendo, é preciso que a sociedade esteja atenta e forte, pois aqueles que queimam livros hoje são capazes de queimar gente amanhã.