segunda-feira, 29 de julho de 2019

Racismo: 80 anos desde que Billie Holiday chocou os EUA com sua interpretação da canção 'Strange Fruit'

Billie Holiday gravou Strange Fruit em 1939


"Você consegue imaginar nunca ter ouvido essa música antes e perceber qual é a estranha fruta pendurada no choupo? Há alguma coisa reveladora quando você a escuta, e aquela imagem de olhos arregalados e boca distorcida salta na direção do ouvinte." Nessa frase, a crítica cultural Emily J. Lordi descreve o poder específico de uma canção que ainda choca, 80 anos depois de ter sido gravada.

Em 20 de abril de 1939, a cantora de jazz Billie Holiday (nascida em 1915, sob o nome de Eleanora Fagan) entrou num estúdio com uma banda de oito músicos para gravar Strange Fruit (Fruta Estranha). Essa chocante música sobre os horrores dos linchamentos nos Estados Unidos não foi apenas o maior sucesso de Billie Holiday, mas também se tornaria uma das mais influentes canções de protesto do século 20 – e que continua a nos dizer coisas sobre violência racial nos dias de hoje.

Em 1999, ela foi escolhida pela revista Time como a "canção do século", e a história de como Strange Fruit foi concebida tornou-se lendária. Originalmente um poema chamado Bitter Fruit, ela foi escrita pelo professor judeu Abel Meeropol, sob o pseudônimo Lewis Allen, em resposta aos linchamentos de negros em Estados do sul dos Estados Unidos.

"Eu escrevi Strange Fruit porque odeio os linchamentos, odeio injustiça e odeio as pessoas que os perpetuam", disse Meeropol, em 1971. Ele nunca testemunhou um linchamento, mas acredita-se que ele tenha composto a canção depois de ver a perturbadora foto do linchamento de Thomas Shipp e Abram Smith, em 1930 em Indiana, feita pelo fotógrafo Lawrence Beitler. Na época em que o poema foi publicado, os linchamentos haviam começado a diminuir – mas fotos como a de Beitler colocaram essas imagens explícitas na consciência da opinião pública.

Desde a primeira apresentação de Strange Fruit por Holliday, o público ficou impressionado


Pouco depois da publicação, Meeropol transformou o poema numa música. Ela foi cantada em reuniões de sindicatos e até mesmo no Madison Square Garden, pela cantora de jazz Laura Duncan. Dizem que foi lá que Robert Gordon, então gerente do clube de jazz Café Society, ouviu Strange Fruit, em 1938. Ele a mencionou para Barney Josephson, fundador do clube, e Meeropol foi convidado a tocá-la para Billie Holiday.

'Não houve nenhum aplauso'

William Duffy, co-autor da autobiografia de Holiday, Lady Sings the Blues (A Senhora Canta o Blues), disse uma vez: "Holiday não canta músicas; ela as transforma". Holiday, seu músico Sonny White e o arranjador Danny Mendelsohn trabalharam duro por três semanas antes de estrearem a renovada Strange Fruitno Café Society. Em seu livro Strange Fuit: the Biography of a Song (Strange Fruit: a Biografia de uma Canção), de 2001, o escritor David Margolick sugere que o clube, com sua política de integração completa, era "provavelmente o único lugar na América onde Strange Fruit poderia ter sido cantada e apreciada".

Para garantir que ela pudesse mesmo ser apreciada, Holiday e Josephson criaram condições específicas para as apresentações. Seria a última música do repertório, haveria silêncio absoluto, nenhum serviço de bar, e as luzes seriam diminuídas, com exceção de um único facho de luz sobre o rosto de Billie Holiday. Como disse Josephson: "As pessoas tinham que se lembrar de Strange Fruit, tinham que sentir seus corpos queimando por dentro".

O que aconteceu na primeira noite em que Holiday interpretou Strange Fruit no Café Society antecipou o tipo de resposta que a canção teria quando fosse lançada comercialmente. "Na primeira vez que eu a cantei, eu achei que houvesse algo de errado... Não houve nenhum aplauso. Aí, uma pessoa começou a bater palmas, de um jeito nervoso. E, de repente, todo mundo estava aplaudindo", disse Holiday em sua autobiografia. Ouvi-la cantar sobre "o repentino cheiro de carne queimada", minutos depois de suas baladas de jazz, era algo perturbador. Meeropol escreveu: "Ela nos deu uma interpretação incrível, a mais dramática e poderosa, que poderia sacudir o público e tirá-lo de sua complacência em qualquer lugar".

Enquanto a canção tornava-se um número regular de seu repertório, Holiday presenciou uma série de diferentes reações, de lágrimas a pessoas deixando a sala e racistas gritando abusos. Emissoras de rádio nos Estados Unidos e no exterior baniram a música, e a gravadora de Billie Holiday, Columbia Records, recusou-se a gravá-la. Quando ela estava em turnê, alguns proprietários de casas de shows tentaram convencê-la a não apresentar a canção, por medo de afastar ou enfurecer parte da plateia.

A interpretação de Holiday de Strange Fruit combinava raiva e tristeza

Não era apenas a natureza política da canção que mexia com quem a ouvia, mas a maneira com que Holiday a interpretava, um jeito frequentemente descrito como inquietante. Lordi argumenta em seu livro Black Resonance: Iconic Women Singers and African Amerian Literature (Ressonância Negra: Mulheres Cantoras Icônicas e Literatura Afro-Americana) que isso era resultado de escolhas deliberadas que Billie Holiday havia feito. Ela disse à BBC Culture: "Há uma verdadeira estética minimalista em sua gravação que chama atenção para como a letra da música é impressionante... Há uma raiva quente na forma como ela divide as sílabas e canta a palavra 'drop'. Mas também existe uma qualidade profunda de um lamento na interpretação de Holiday".

O que é tão impressionante a respeito de Strange Fruit é o fato de que ela deixou uma marca permanente na sociedade americana logo depois de seu lançamento. Samuel Grafton, colunista do jornal New York Post, escreveu sobre a canção: "Mesmo depois da décima vez que você a ouvir, ela o fará piscar e se segurar na cadeira. Mesmo agora, enquanto penso na música, o cabelo na minha nuca se arrepia, e eu tenho vontade de bater em alguém. E eu acho que sei em quem".

Strange Fruit não foi a primeira música popular a lidar com a questão de raça. Black and Blue, de Fats Waller, veio dez anos antes, e Lead Belly gravou The Bourgeois Blues no mesmo mês em que Holiday gravou Strange Fruit. Mas Strange Fruit destaca-se entre as canções de protesto devido a seu conteúdo explícito e seu subsequente sucesso comercial. Tad Hershorn, um arquivista do Instituto Rutgers de Estudo sobre Jazz, disse à BBC Culture: "Foi uma canção de protesto tão 'tapa na cara' que realmente deu a ela fama fora do [bairro negro nova-iorquino] Harlem... Realmente deixou a cantora e o público sem lugar para se esconder".

Chamado às armas

Essa ousada confrontação ajudou a galvanizar um movimento que acabaria alterando o curso da história dos Estados Unidos. Ativistas contra linchamentos levaram Strange Fruit a congressistas para encorajá-los a propor um viável projeto de lei contra essa violência. Uma crítica publicada na revista Time referiu-se à canção como "uma grande peça de propaganda musical da NAACP [associação em defesa de negros nos EUA]". Ahmet Ertegun, que mais tarde fundaria a gravadora Atlantic Records, chamou a música de "uma declaração de guerra, o começo do movimento em defesa de direitos civis".

Strange Fruit também trouxe a seus autores uma atenção indesejada. Em 1940, Meeropol, que era socialista, foi convocado para testemunhar num comitê investigando comunismo e foi questionado se o Partido Comunista dos EUA havia lhe dado algum dinheiro para que ele compusesse Strange Fruit. O jornalista Johann Hari sugere que, enquanto histórias sobre o uso de drogas por Holiday já circulavam, sua primeira apresentação de Strange Fruit a colocou no radar de Harry Anslinger, o notório chefe do Departamento Federal de Narcóticos.

Para alguns, era impossível separar Strange Fruit e a vida pessoal de Holiday: os aspectos de sua biografia que fizeram dela a encarnação da heroína trágica do jazz são a fonte da qualidade melancólica de sua voz. Apesar do fato de que Holiday nunca testemunhou um linchamento (ao contrário do que mostra o filme de 1972, Lady Sings the Blues, com Diana Ross), Strange Fruit ainda evocava a injustiça racial que ela acreditava ter matado seu pai, Clarence, que não conseguiu obter tratamento num hospital do Texas.

Diana Ross viveu o papel de Billie Holiday em filme do início dos anos 1970

 Mas, enquanto Strange Fruit ia se separando da vida pessoal de Billie Holiday ao longo das décadas, a música também se distanciou do horror específico do linchamento. "Ela acabou representando o racismo de uma forma geral", David Margolick diz à BBC Culture. "Uma vez ou outra sempre existe um momento terrível, mas o linchamento tornou-se uma espécie de metáfora, e nesse sentido a música tornou-se mais metafórica do que literal ao longo das décadas."

Talvez seja por isso que anos mais tarde, segundo Margolick, Meeropol sugeriu que Strange Fruit era uma canção que "pertencia aos anos 1930". Sua influência, porém, se espalhou por décadas. As canções associadas com o movimento por direitos civis dos anos 1960 são menos explícitas que Strange Fruit – mas Margolick argumenta que ela "condicionou as pessoas que mais tarde cantariam músicas de protesto nos anos 1960 e lhes ensinou o impacto que uma forte canção pode ter".

Muitos músicos reinterpretaram, fizeram samples e adaptaram Strange Fruit, sendo a mais famosa versão gravada por Nina Simone em 1965 – enquanto Kanye West usou trechos da versão de Simone em sua música Blood on the Leaves, de 2013. Em 2017, a cantora britânica Rebecca Ferguson anunciou que só aceitaria o convite para cantar na posse do presidente Donald Trump se ela pudesse cantar Strange Fruit. Para Lordi, o poder interminável da canção vem da forma com que ela "destila a violência racial de forma tão clara. Ela é uma abreviação de 'Qual é a canção que indicia de forma mais poderosa o legado continuado da violência racial neste país [EUA] e pelo mundo todo?'".

Nina Simone gravou uma versão de Strange Fruit em 1965

Em 2002, Strange Fruit foi incluída no Registro Nacional da Biblioteca do Congresso dos EUA, ficando assim imortalizada como uma canção de grande significado no patrimônio musical dos Estados Unidos. Holiday morreu em 1959, e Meeropol em 1986 – mas sua colaboração continuou viva, sem que seu poder de chocar tenha diminuído. Ela inspirou músicos a cantar sobre injustiça com franqueza e a consciência de que uma música pode ser um ímpeto atemporal em favor de mudanças sociais.

"Existe algo nessa música que ainda é muito radioativo", diz Margolick. "Ela continua relevante, porque a questão da raça ainda é relevante. Está nas primeiras páginas dos nossos jornais todos os dias. Os impulsos de que [Meeropol] falava seguem muito presentes entre nós."

Letra original de Strange Fruit

Southern trees bear a strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.


domingo, 14 de julho de 2019

STEPHANIE BORGES FALA SOBRE O ESFORÇO DE TRADUZIR AUDRE LORDE




Por Stephanie Borges

Meu primeiro contato com a prosa de Audre Lorde foi A poesia não é um luxo. O tom do texto me surpreendeu. Seus ensaios, muitas vezes apresentados em conferências, soam como conversas. Há uma cadência, imagens com as quais ela captura nossa atenção, sensibiliza-nos com sua franqueza e então apresenta suas ideias. Ao final da leitura, abri o Youtube para ouvir registros de Lorde lendo poemas, entrevistas, gravações de palestras. Suas palavras me instigaram a buscar sua voz. Eu ainda não sabia, mas era só o começo. 

Irmã outsider é uma coletânea fundamental para compreender o pensamento feminista interseccional de Lorde, que se articula a partir das experiências de ser uma mulher negra, lésbica, mãe e feminista. Integrante de diversas minorias, a autora reforça em seus textos a importância de as pessoas se definirem com suas palavras, pois a sociedade já tem ideias pré-concebidas sobre corpos que estão fora de uma norma branca, magra e hétero. A poesia é uma necessidade, uma forma de encontrar as palavras que nos permitem ser honestas com quem somos e o com o que desejamos, e não apenas um jogo de linguagem.

Em vários momentos, perguntei-me se me tornei uma tradutora de Audre Lorde por causa das semelhanças e diferenças entre nós. A primeira edição de Irmã outsider foi lançada em 1984 – ano do meu nascimento – e Lorde morreu em 1992, quando eu descobria a poesia com Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles. Cheguei aos seus ensaios em 2017, pesquisando poetas negras enquanto escrevia meu primeiro livro Talvez precisemos de um nome para isso. Nosso reencontro se deu pela tradução: duas outsiders pensando a realidade a partir das muitas maneiras como nossos corpos não se enquadram em determinadas visões de mundo. 

Traduzir Irmã outsider não foi apenas um processo intelectual, a leitura atenta, as escolhas e a pesquisa. Era lidar com um texto que evocava lembranças, histórias de família, experiências para as quais eu ainda não tinha nomes, mas ela já tinha conceituado há décadas com muita clareza, embora a raiva de uma mulher diante da misoginia e do racismo não seja algo simples de articular com objetividade. Encontrar o tom da prosa de Lorde é um exercício de escuta. Aproximar a tradução de uma certa informalidade, da conversa, mas sem diluir o impacto de certas decisões da autora.

Lorde rejeita a ideia de privilegiar um dos aspectos de sua identidade de acordo com o papel que desempenha. Assim, a autora de Irmã outsider é uma poeta escrevendo ensaios, uma professora se dirigindo ao público, uma mãe dividindo suas experiências e uma mulher encarando a própria mortalidade depois de um diagnóstico de câncer. E, embora um texto ou outro evidencie uma face mais do que outra, todas se fazem presentes na forma como Lorde traça relações entre sua vida e as estruturas sociais, indo do particular para o geral, associando o pessoal e o político.

Um dos meus desafios na tradução era conciliar a poeta, a leitora, a jornalista e a mulher negra que se reconhece nas análises de Lorde e aceitar que todas essas identidades carregam saberes úteis para me aproximar de seus textos e fazê-los chegar ao português. Pelo menos uma vez por semana eu voltava ao Youtube para ouvir Audre Lorde e me perguntava: como vai soar essa tradução? Como encontrar um registro que acolha a vulnerabilidade e a força com que ela divide o que aprendeu lidando com o câncer e o conhecimento que provém do erótico, da poesia?

Nos EUA, a militância nos movimentos antirracistas e nas lutas pelos direitos civis levou as pessoas negras a se tratarem por brother/sister, evocando alianças e semelhanças de viver as consequências de uma diáspora forçada. Lorde se posiciona como uma irmã, tratando outras mulheres negras na primeira pessoa do plural, estabelecendo um território comum para depois nos lembrar que somos também indivíduas, que parte da lógica racista consiste em apagar nossas complexidades e particularidades. Reconhecer nossas diferenças e trabalhar por objetivos em comum apesar delas é a única forma de conduzir lutas coletivas contra machismo e o racismo.

A tradução envolve a consciência da perda, das limitações, da necessidade de escolhas e, neste caso, do meu desejo de me aproximar da voz de Lorde. Ler sua prosa sem esquecer que são textos de uma poeta me parecia relevante para preservar imagens e fazer escolhas que provocassem estranhamentos. Leitores de poesia estão acostumados com a experiência. No entanto, Irmã outsider é uma referência do feminismo negro e lésbico, uma obra que nos ajuda a compreender a importância da interseccionalidade e da descolonização. Como conciliar a tensão entre um pensamento sofisticado e um tom que recorre ao poético para abordar experiências extremamente políticas?

Quando a poeta afirma que mulheres negras são ensinadas a rejeitar a cor de sua pele, a textura de seus cabelos, tudo o que é associado à negritude e a ser mulher, penso em meus cabelos alisados na adolescência. Tantos rostos conhecidos me veem à cabeça. Nenhuma de nós veio ao mundo querendo ser outra coisa, mas os discursos, a ausência de mulheres negras em espaços de decisão e poder, a pouca oferta de histórias em que falamos de nós com nossas palavras servem como uma lição de que há pouco espaço para quem somos. Parte do processo é desaprender isso, preservar o que nos serve e descobrir como criar as mudanças que consideramos necessárias. As ferramentas do senhor não derrubarão a casa-grande.

Traduzir Audre Lorde foi um aprendizado como poeta, feminista e intelectual. Foi um processo de aceitar as minhas vulnerabilidades para que suas palavras chegassem a outras que, como eu, um dia, precisam delas e ainda nem sabem. 

Soa diferente em português, mas gosto de pensar que minha intromissão como tradutora em Irmã outsider é a tentativa de transmitir a sensação de ouvir essa mulher que considero sábia. Se meu corpo e minha voz se impõem nesses ensaios é porque eu gostaria que terminassem o livro com a impressão que me acompanha desde a minha primeira leitura Audre Lorde: a de ter ganho uma irmã.

O BRASIL DE BOLSONARO NÃO MERECIA MESMO JOÃO GILBERTO



João, nosso gênio maior, se vai – e isso é extremamente irônico – no exato instante em que o país que ele nos deixou é tomado de assalto por boçais


por Julinho Bittencourt

João reinventou um país que perseguiu a perfeição à exaustão. Um país de acordes límpidos, tempos sincopados, emissão suave e afinação impecável. Uma quadratura onde tudo é ciência e técnica, arte, expressão e inovação.
João inventou uma canção redonda, exata, que encantou o mundo. Uma expressão musical que dialogava com a poesia de Drummond, o Grande Sertão de Guimarães Rosa, a arquitetura de Niemeyer, a geografia de Milton Santos, o futebol de Pelé, Garrincha, os sons de Jobim, Vinícius e Villa-Lobos.
João orgulhou o Brasil. Nos mostrou modernos, desenvolvidos, amplos, feitos para o mundo contemporâneo, rebeldes e transformadores. Tudo o que for dito – e têm-se falado demais – é pouco perto do que nos deixou enquanto significado e significante, espaço e tempo, som e silêncio.
Mesmo os que não gostam de João são definitivamente influenciados por ele, reinventados pela sua concepção musical, por seus sussurros, emissões e tempos.
João é o Brasil moderno que, aos 88 anos de idade, se viu entregue de volta a um país arcaico e perigoso. Um pais onde artistas e visionários são ameaçados e agredidos nas ruas por fascistas odientos. Um lugar onde se extermina o fomento à cultura e se reduz a educação ao mínimo inquestionável.
Um Estado erigido pelo raciocínio de um só tempo. Ou pela total falta dele. Um país saudoso de seus piores pesadelos, pré-iluminista, que sonha com uma era anterior a si próprio, quando não era (e nem nunca foi) nem sequer o país que pretende se desenhar, atrasado, mofino, avarento, excludente.
João se vai – e isso é extremamente irônico – no exato instante em que o país que ele nos deixou é tomado de assalto por boçais. Uma gente que, de tão desqualificada, não imaginávamos possível. Uma fauna tacanha que, em pleno trópico efervescente de cores e sons, etnias múltiplas e sexualidades diversas, quer nos reduzir de volta ao que nunca fomos. Ao azul e rosa, ao papai e mamãe, à marcha bisonha das arminhas, às fraquejadas e ao extermínio de pretos, indígenas, LGBTIs e comunistas.
João é o Brasil grande, perfeito, orgulhoso. João nos fez do mundo, altaneiros, profusos. Segundo o Nobel de literatura, Bob Dylan, um sinônimo da perfeição que ele, agraciado e consagrado, afirmava ter desistido há tempos de alcançar.