segunda-feira, 24 de junho de 2019

LULA ESCREVE A CELSO AMORIM



Querido amigo,
A cada dia fico mais preocupado com o que está acontecendo em nosso Brasil. As notícias que recebo são de desemprego, crise nas escolas e hospitais, a redução e até mesmo no fim dos programas que ajudam o povo, a volta da fome. Sei que estão entregando as riquezas do país aos estrangeiros, destruindo ou privatizando o que nossa gente construiu com tanto sacrifício. Traindo a soberania nacional.
É difícil manter a esperança numa situação como essa, mas o brasileiro não desiste nunca, não é verdade? Não perco a fé no nosso povo, o que me ajuda a não fraquejar na prisão injusta em que estou faz mais de um ano. Você deve se lembrar que no dia 7 de abril de 2018, ao me despedir dos companheiros em São Bernardo, falei que estava cumprindo a decisão do juiz, mas certo de que minha inocência ainda seria reconhecida. E que seria anulada a farsa montada para me prender sem ter cometido crime. Continuo acreditando.
Todos os dias acordo pensando que estou mais perto da libertação, porque o meu caso não tem mistério. É só ler as provas que os advogados reuniram: que o tal tríplex nunca foi meu, nem de fato nem de direito, e que nem na construção nem a reforma entrou dinheiro de contratos com a Petrobrás. São fatos que o próprio Sergio Moro reconheceu quando teve de responder o recurso da defesa.
É só analisar o processo com imparcialidade para ver que o Moro estava decidido a me condenar antes mesmo de receber a denúncia dos procuradores. Ele mandou invadir minha casa e me levar à força pra depor sem nunca ter me intimado. Mandou grampear meus telefonemas, da minha mulher, meus filhos e até dos meus advogados, o que é gravíssimo numa democracia. Dirigia os interrogatórios, como se fosse o meu acusador, e não deixava a defesa fazer perguntas. Era um juiz que tinha lado, o lado da acusação.
A denúncia contra mim era tão falsa e inconsistente que, para me condenar, o Moro mudou as acusações feitas pelos promotores. Me acusaram de ter recebido um imóvel em troca de favor mas, como viram que não era meu, ele me condenou dizendo que foi “atribuído” a mim. Me acusaram de ter feito atos para beneficiar uma empresa. Mas nunca houve ato nenhum e aí ele me condenou por “atos indeterminados”. Isso não existe na lei nem no direito, só na cabeça de quem queria condenar de qualquer jeito.
A parcialidade dele se confirmou até pelo que fez depois de me condenar e prender. Em julho do ano passado, quando um desembargador do TRF-4 mandou me soltar, o Moro interrompeu as férias para acionar outro desembargador, amigo dele, que anulou a decisão. Em setembro, ele fez de tudo para proibir que eu desse uma entrevista. Pensei que fosse pura mesquinharia, mas entendi a razão quando ele divulgou, na véspera da eleição, um depoimento do Palocci que de tão falso nem serviu para o processo. O que o Moro queria era prejudicar nosso candidato e ajudar o dele.
Se alguém ainda tinha dúvida sobre de que lado o juiz sempre esteve e qual era o motivo de me perseguir, a dúvida acabou quando ele aceitou ser ministro da Justiça do Bolsonaro. E toda a verdade ficou clara: fui acusado, julgado e condenado sem provas para não disputar as eleições. Essa era única forma do candidato dele vencer.
A Constituição e a lei determinam que um processo é nulo se o juiz não for imparcial e independente. Se o juiz tem interesse pessoal ou político num caso, se tem amizade ou inimizade com a pessoa a set julgada, ele tem de se declarar suspeito e impedido. É o que fazem os magistrados honestos, de caráter. Mas o Moro, não. Ele sempre recusou se declarar impedido no meu caso, apesar de todas as evidências de que era meu inimigo político.
Meus advogados recorreram ao Supremo Tribunal Federal, para que eu tenha finalmente um processo e um julgamento justos, o que nunca tive nas mãos de Sergio Moro. Muita gente poderosa, no Brasil e até de outros países, quer impedir essa decisão, ou continuar adiando, o que dá no mesmo para quem está preso injustamente.
Alguns dizem que ao anular meu processo estarão anulando todas as decisões da Lava Jato, o que é uma grande mentira pois na Justiça cada caso é um caso. Também tentam confundir, dizendo que meu caso só poderia ser julgado depois de uma investigação sobre as mensagens entre Moro e os procuradores que estão sendo reveladas nos últimos dias. Acontece que nós entramos com a ação em novembro do ano passado, muito antes dos jornalistas do Intercept divulgarem essas notícias. Já apresentamos provas suficientes de que o juiz é suspeito e não foi imparcial.
Tudo que espero, caro amigo, é que a justiça finalmente seja feita. Tudo o que quero é ter direito a um julgamento justo, por um juiz imparcial, para que poder demonstrar com fatos que sou inocente de tudo o que me acusaram. Quero ser julgado dentro do processo legal, com base em provas, e não em convicções. Quero ser julgado pelas leis do meu país, e não pelas manchetes dos jornais.
A pergunta que faço todos os dias aqui onde estou é uma só: por que tanto medo da verdade? A resposta não interessa apenas a mim, mas a todos que esperam por Justiça.
Quero me despedir dizendo até breve, meu amigo. Até o dia da verdade libertadora. Um grande abraço do
Lula
Curitiba, 24 de junho de 2019

sábado, 22 de junho de 2019

Os ‘virtuosos’ não podem ‘corrigir’ a Constituição


Os ‘virtuosos’ não podem ‘corrigir’ a Constituição, diz jurista
Por Fernando Brito
22/06/2019



Geraldo Prado não é “apenas” professor de Direito Processual Penal na Universidade do Rio de Janeiro. Foi Promotor de Justiça e desembargador. Sabe bem do que está falando, em teoria e prática. O artigo que publica hoje no Estadão, com a simplicidade de um “precisa desenhar?”, desmancha completamente as teses pomposas dos que, no Judiciário, acham que podem “corrigir” a Constituição segundo suas “causas morais” e o cinismo dos que vêem como “normalidade”  relações promíscuas entre promotores e juízes.
Vale a pena a leitura, é simples e irrespondível.

O STF na encruzilhada

Geraldo Prado, no Estadão
As pessoas leigas em Direito muitas vezes somente percebem a importância do respeito escrupuloso às regras jurídicas quando vivenciam alguma experiência elas próprias.
O sentimento mais particular da relevância do cumprimento das leis não é suficiente para a construção de uma sociedade mais digna, fraterna e ética.
O salto para o plano do coletivo é fundamental porque é o passo à frente na criação e manutenção de uma tradição genuinamente democrática.
Cobrar a aplicação do Direito em relação ao desconhecido ou mesmo ao adversário como deveria ser aplicado a si mesmo é um dos fatores que caracterizam uma cultura democrática.
A exigência moral de que a lei se aplique a todos que estejam na mesma situação, de que as normas jurídicas devem ser escrupulosamente respeitadas, de que as competências para elaborar as leis, decidir sobre sua correta aplicação aos casos e governar a sociedade sejam igualmente tratadas como espaços políticos autônomos que devem conviver harmoniosamente, são condições básicas de que não devemos e podemos abrir mão.
O que a história nos ensina, dolorosamente, é que sempre que esta ética é desprezada, as leis ignoradas e a vontade dos poderosos é imposta como régua moral para corrigir a corrupção alheia, as sociedades entram no terreno do vale-tudo no qual prevalece a lei do mais forte.
E a história também ensina que não importa o quão poderosa seja a pessoa no momento em que maneja a interpretação das leis contra o texto legal, com fundamento em aparentes boas razões e também não interessa a que título exerce o poder, se deriva da riqueza ou da ocupação de um cargo público: o exercício do poder é algo transitório e amanhã será o poderoso de ontem a reclamar em sua defesa o direito que ele próprio pisoteou e ajudou a destruir.
No próximo dia 11 de agosto, o Mundo comemora os cem anos da Constituição alemã de Weimar. Para quem não sabe convém explicar que a Constituição de Weimar, promulgada após a derrota alemã na I Guerra Mundial, pretendia ser uma barreira contra os autoritarismos e uma alavanca capaz de impulsionar a proteção de direitos individuais e sociais (dos trabalhadores, previdenciários etc.).
O generoso projeto constitucional, no entanto, não foi capaz de impedir a ascensão do nazismo. Mesmo antes de 1933, quando Hitler chega ao poder, várias personagens importantes da vida alemã, não necessariamente autoritárias, já clamavam por aplicar a Constituição contra seu texto expresso, na defesa de virtudes cidadãs e patrióticas e no presumido interesse geral sobre o individual, usando como argumento a prevalência do fático sobre as regras jurídicas: a vida muda, o mundo se transforma e a velocidade dessa dinâmica social não é acompanhada pelas alterações da Constituição que obedecem a rituais lentos e exigências formais rigorosas, é o que dizem.
A este movimento de mudar a Constituição sem alterar seu texto e mesmo aplicá-la contra o que a própria Constituição determina deu-se o nome de “Mutação Constitucional”.
Pessoas poderosas convictas de suas virtudes corrigiam por conta própria os erros da Constituição. A mutação constitucional idealizada na Alemanha em 1906, em outras circunstâncias, pelo jurista Jellinek, para proteger direitos, converteu-se nas mãos dos virtuosos da década de 30 no instrumento que levou o mundo à beira do abismo.
Parece que não aprendemos a lição.
Ao menos não aqui no Brasil.
Em seu voto contra a aplicação literal e incontroversa da presunção de inocência conforme está definida na Constituição – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória – o ministro Luís Roberto Barroso invocou a “Mutação Constitucional” para justificar sua posição de não aguardar o trânsito em julgado de uma sentença condenatória para considerar alguém culpado.
O trânsito em julgado, dizem os que não apreciam a presunção de inocência, é algo demorado nos processos criminais, em especial quando se trata de processos criminais contra acusados ricos e poderosos.
Aguardar por ele, como preconiza o texto constitucional, é não estar atento aos novos tempos, que reclamam seja a opinião pública satisfeita em seu desejo de ver punidos os poderosos.
É necessário, portanto, deixar de aplicar a Constituição – em outras palavras, atuar na prática em sentido contrário ao texto da Constituição – para nos ajustarmos aos novos tempos.
A porta que se escancara quando o STF se transforma de guardião da Constituição em órgão que a corrige, por entender que a Constituição está errada, termina por permitir que passe todo tipo de gente que se entende virtuosa e, estando temporariamente no exercício do poder, resolva corrigir os rumos da história por suas próprias mãos.
É o que hoje a totalidade dos brasileiros constata ao ver desnudados pelas reportagens do The Intercept Brasil os métodos ilegais no âmbito da Lava Jato, métodos praticados por Sérgio Moro e alguns procuradores da República, que tímida, contraditória e prudentemente os reconhecem.
Não é verdadeira a alegação de que a tradição autoriza relações juridicamente promíscuas entre juiz e acusador. A regras legais não autorizam, antes proíbem, juízes de interferir na preparação da futura acusação, sugerir estratégias à acusação contra o réu, pasmem no curso do processo (!) e eleger critérios políticos para igualmente sugerir ao acusador quem, quando e em que medida este deve ou pode acusar alguém, quer esta pessoa mereça ou não ser melindrada.
Atitudes dessa ordem, flagrantemente ilegais, que violam a regra canônica da imparcialidade do julgador, da integridade do processo, da independência do Ministério Público e da impessoalidade na atuação dos seus membros, levam à nulidade de condenações que hajam sido proferidas.
Em 2004 o STF declarou inconstitucional a atuação de juiz em preparação da acusação por violar a imparcialidade do julgador (ADI 1.570 rel. Maurício Correa).
Narrativas estrategicamente definidas de antemão por acusadores e juízes podem ser mascaradas no processo por meio de um relato que aparentemente faça sentido. Como dizem os portugueses, “com a verdade me enganas”.
Estes comportamentos, no entanto, somente foram e são possíveis por que incentivados em um ambiente de “Mutação Constitucional” que no lugar de ampliar a proteção de direitos, como pretendia Jellinek, os suprime, como ocorreu na Alemanha de 1930.
O potencial autoritário de se transferir aos virtuosos a decisão de aplicar ou não as leis e a Constituição é imenso e a grande prejudicada, ao fim e ao cabo, é a sociedade.
Como disse no início. Poder não é algo que alguém tenha. As pessoas exercem o poder temporariamente, não se tornam donas dele para sempre. Daí a ironia de ver na audiência do Senado o ministro da Justiça que tanto defendeu o aproveitamento – e ao que tudo indica cogitou – de provas ilícitas manifestar-se agora enfaticamente contra elas. A próxima etapa será vê-lo defendendo a presunção de inocência. Convém anotar.
A Constituição não deve valer apenas enquanto é útil para nos defender. Ela deve valer o tempo todo, em relação a todas as pessoas.
Caberá ao STF assegurar isso. Se são verdadeiros os boatos de que há militares contrários à aplicação da Constituição, algo em que não acredito, apenas resta dizer que… já passamos dessa fase.

Disponível em  http://www.tijolaco.net/blog/os-virtuosos-nao-podem-corrigir-a-constituicao-diz-jurista/http://www.tijolaco.net/blog/os-virtuosos-nao-podem-corrigir-a-constituicao-diz-jurista/