Clara Ferrero
12/07/2017
O que é sororidade? E cultura do estupro? Solucionamos todas as dúvidas neste pequeno dicionário
Se você acredita na
igualdade entre homens e mulheres, você é feminista. Por mais evidente que
deveria parecer a esta altura, o equívoco na hora de definir o feminismoacaba dando
origem a frases como “não acho que é preciso ser feminista nem machista, porque
os extremos nunca são bons nem para um lado nem para o outro” (pronunciada pela
celebridade espanhola Paula
Echevarria) ou “esqueçamos o machismo, o feminismo, ou a puta que o pariu”
(Cristina
Pedroche, mais uma celebridade espanhola). Qualquer dicionário explica que
“o feminismo é a ideologia que defende que as mulheres devem ter os mesmos
direitos que os homens”. Isso esclarecido, passamos a definir outros conceitos
que podem ser utilizados sobre o feminismo e que continuam suscitando
interrogações:
Sororidade: apesar
de ser usado há mais de 40 anos, se você procurar esse termo em um dicionário,
ela o remeterá para “sonoridade”, depois de afirmar que aquela palavra não está
cadastrada. O que para alguns continua a ser uma espécie de erro é, na verdade,
um conceito que acaba com todos os preconceitossegundo os
quais as mulheres não
conseguem ser amigas, que são rivais entre si por natureza ou que são mais
cruéis entre elas. Nos anos 70, a escritora norte-americana Kate Millett cunhou
o termo sisterhood e depois disso as feministas francesas
começaram a usar sororité. Atualmente, a antropóloga e política
mexicana Marcela Lagarde, uma das maiores divulgadoras do conceito em língua
espanhola, o define como “o apoio recíproco entre as mulheres para se conseguir
o poder para todas”. É uma aliança entre as mulheres, que proporciona a
confiança, o reconhecimento mútuo da autoridade e o apoio. “Trata-se de pactuar
de maneira limitada e pontual algumas coisas com cada vez mais mulheres. Somar
e criar vínculos. Assumir que cada uma é um elo no encontro com muitas outras”,
escreve Lagarde.
Cultura do estupro: Segundo
o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma
mulher é estuprada a cada 11 minutos. E esse dado
se repete no mundo todo. Esse conceito se refere a uma sociedade que
permite e tolera as agressões sexuais, se
culpa a vítima, se banaliza o estupro ou se considera que não se trata
de estupro quando o autor é o companheiro da vítima. Uma sociedade na qual o
desejo masculino parece estar a cima de todos os demais e na qual,
internacionalmente, apenas 5% dos julgamentos por estupro acabam em condenação,
segundo o Alto Comissariado para os Direitos Humanos (ACDH) das Nações Unidas,
dirigido por Louise Arbour. Coisas do tipo “é isso que acontece quando você
fica bêbada ou por se mostrar demais”, os juízes
que perguntam se você “fechou bem as pernas” ou os policiais que
questionam as mulheres que ousam fazer uma denúncia, todos esses são exemplos
de como a cultura do estupro se perpetua.
Objetificação: Reduzir
uma pessoa à condição de coisa. Costuma ser utilizado em referência à
objetificação sexual feminina, que não é outra coisa do que tratar as mulheres
como objetos, limitando-as a seus atributos sexuais e à sua beleza física, sem
levar em conta sua personalidade e sua existência como pessoa. Quando a
publicidade exibe as mulheres como objetos de desfrute e de prazer para os
homens, ela as objetifica. Quando os programas de televisão contratam moças
deslumbrantes que apenas posam ao lado de um apresentador sem dizer nada, as
estão objetificando. Quando as mulheres aparecem reduzidas
a seus seios e seus traseiros, sem importar aquilo que pensam, estão
sendo objetificadas.
Pussy Hat: O
famoso gorro rosa com orelhinhas se popularizou durante as marchas
pelos direitos das mulheres realizadas no mundo inteiro no começo
deste ano. A
ideia partiu de Krista Suh e Jayna Zweiman, uma roteirista de comédia e uma
arquiteta fãs de tricô que decidiram transformar a marcha das mulheres em
Washington em um rio de gorros de lã cor de rosa. Seu projeto, chamado de
Pussyhat Project, em resposta ao grab them from the pussy (pegá-las
pela buceta) dito
por Trump em uma polêmica
gravação, acabou se espalhando em nível global, e até mesmo marcas como
Missoni o levaram às passarelas.
Micromachismo: Se
um homem diz
que não cumpre as tarefas do lar porque “não sabe” ou porque “as mulheres o
fazem melhor”, podemos falar em micromachismo. O mesmo ocorre quando o garçom
serve a cerveja direto para o homem da mesa sem perguntar quem a pediu, ou
quando entrega a conta para ele. O mansplaning (que explicamos
mais adiante) também costuma ser incluído nessa categoria. O termo foi cunhado
pelo psicólogo argentino Luis Bonino em 1990 para descrever um machismo de
“baixa intensidade, suave e cotidiano”. No entanto, vários estudiosos,
ativistas e feministas consideram que o termo não é totalmente adequado, pois
“micro” minimiza o problema. Diana López Valera, autora de No és país para
coños [Este não é um país para xoxotas], explicou
a questão para o ELPAÍS da seguinte maneira: “O prefixo ‘micro’ para
tornar a coisa mais frágil, menor. Mas, no fim das contas, tudo é machismo puro
e simples. O assédio de rua é machismo; no trabalho, também. Falamos em
‘micromachismo’ para nos referir a coisas que não são tão graves como um
estupro, por exemplo, mas nós, mulheres, estamos cheias desses
‘micromachismos’”.
Empoderamento: além
de ter sido uma
das palavras mais procuradas em 2016, o verbo empoderar se
tornou uma palavra-chave para contribuir para o avanço social em busca da
igualdade entre homens e mulheres. Costuma ser usado em referência à tomada de
consciência do poder que as mulheres ostentam individual e coletivamente e que
tem a ver com o resgate de sua própria dignidade como pessoa. Na Conferência Mundial
das Mulheres, realizada em Pequim em 1995, criou-se
um programa em prol do empoderamento da mulher para reforçar o aumento da
participação feminina nos processos de tomada de decisões e no acesso ao poder.
Feminicídio: Assassinato
de uma mulher em função de seu sexo. Trata-se de um crime de ódio contra
mulheres e meninas pelo simples fato de elas serem mulheres ou meninas. Diana
Russel foi pioneira no seu uso (‘femicide’, em inglês) e se costuma distinguir
entre feminicídio íntimo (cometido por uma pessoa com quem a vítima tinha ou
havia tido uma relação sentimental) e não íntimo (perpetrado por uma pessoa ou
grupo de pessoas com quem a vítima não tinha ou não havia tido nenhuma relação
sentimental ou parentesco). A
campanha #NiUnaMenos, que se tornou viral em poucos meses, denuncia os
crimes cometidos contra mulheres em países como Argentina ou México depois dos
assassinatos, especialmente dramáticos, de Daiana garcía e Yésica Muñoz.
Masculinismo: Movimento
que procura a igualdade entre o homem e a mulher da perspectiva masculina. Os
masculinistas se queixam de que o feminismo busca a igualdade do ponto de vista
da mulher e pretendem obtê-la defendendo os direitos e necessidades dos homens,
assim como os valores e atitudes consideradas como tipicamente masculinas.
Miguel Lorente, em artigo publicado no Huffpost, faz esta
interessante reflexão: “A estratégia atual do machismo é o post-machismo,
essa tentativa de revestir de neutralidade as suas exigências e reivindicações
a fim de criar a confusão necessária que gere dúvida, passividade e faça com
que tudo continue igual. E o post-machismo sabe que a batalha
da linguagem é essencial para defender posições e definir realidades, daí o seu
interesse, desde o começo, de se contrapor ao feminismo dizendo que este era o
mesmo que o machismo. Depois de fracassar com essa comparação grosseira,
inventaram a palavra hembrismo [algo como femeanismo] e
ao mesmo tempo a usaram acompanhada de palavras como feminazi e mangina, para
que a crítica não se limitasse às ideias e chegasse às pessoas que as propunham
[...] Agora, falam em masculinismo, que aparece neutro e
comparável, no seu sentido, ao conceito de feminismo. Dessa
maneira, embora suas palavras cheias de ataques contra a igualdade sejam as
mesmas, sua imagem é diferente, e elas se apresentam como mais proativas na
busca por essa ‘igualdade real’ que se supõe dirigir as mesmas ações para
homens e mulheres e, desse modo, manter a desigualdade atual, sem falar no
significado histórico que deu origem à mesma”.
Violência
doméstica versus violência machista: É comum encontrar
nos meios de comunicação expressões como “violência machista” e “violência
doméstica” sendo usadas quase como sinônimos. O Livro de Estilo do
EL PAÍS especifica que “não se deve escrever violência de doméstica, e sim
violência machista, violência sexista ou violência dos homens. A “violência
doméstica” engloba também a praticada contra crianças.
Mansplaining: Quando
um homem explica algo a uma mulher, e o faz de maneira condescendente porque dá
como certo que sabe mais do que ela, podemos falar de mansplaining.
Rebecca Solnit cunhou
esse termo em 2008 no seu ensaio Os Homens Explicam Tudo para
Mim (Cultrix) para dar nome a uma situação que ela havia vivido numa
festa: um homem tentando lhe esclarecer do que se tratava um livro que ela
mesma tinha escrito. Como relatava Noelia Ramírez neste
artigo, “um exemplo clássico de mansplaining é o tuiteiro aleatório
que explicou o que é ciência a uma astronauta da NASA. É só um, mas
há muitíssimos outros. O mansplaining está tão enraizado
socialmente que até a própria Solnit, uma reputada ensaísta e escritora com
mais de duas dezenas de livros publicados, se flagrou duvidando do seu
conhecimento e procurando na Internet dados sobre o
movimento das mulheres pela paz (sobre o qual ela tinha pesquisado previamente)
só porque algumas horas antes um homem a menosprezou, afirmando taxativamente
que uma de suas teorias era mentira (não era)”.
Manspreading: Diz-se
de quando um passageiro (homem) abre tanto as pernas ao estar sentado no
transporte público que ocupa o espaço do passageiro sentado ao seu lado. Em
castelhano, poderia ser traduzido como despatarre, e há alguns dias
o termo ganhou destaque na imprensa porque a Empresa Municipal de Transportes
de Madri anunciou
a instalação de adesivos nos ônibusadvertindo contra o “despatarre masculino”.
Desde 2013, diversas contas do Tumblr reúnem imagens destes homens esparramados
no transporte público, como forma de denunciar seu comportamento e a invasão do
espaço pessoal. O imperdível Tumblr chamado One Bro,Two Seats vai
um passo além, colocando, graças ao Photoshop, qualquer objeto imaginável entre
as pernas dos folgados. O termo surgiu em 2014, quando um blog de notícias
de Nova York decidiu batizar
essa postura como Man Spread.
Disparidade de gênero: O Instituto
Andaluz da Mulher a define como a diferença entre as taxas masculina e
feminina dentro de uma variável, e se calcula subtraindo taxa feminina da taxa
masculina. Ou seja, quanto menor for o índice de disparidade entre homens e
mulheres, mais perto estaremos da igualdade. Normalmente se fala em brecha
salarial de gênero (refere-se às diferenças salariais entre mulheres e homens,
tanto no desempenho de trabalhos iguais como a decorrente da menor remuneração
paga a trabalhos tidos como femininos) e desigualdade tecnológica de gênero
(designa as desigualdades entre mulheres e homens na formação e no uso das
novas tecnologias). Em poucas palavras, é a razão pela qual uma
mulher ganha 18,8% menos que seu colega de trabalho homem fazendo
exatamente o mesmo.
Patriarcado: É
o sistema sociopolítico em que o gênero masculino e a heterossexualidade têm
supremacia sobre outros gêneros e sobre outras orientações sexuais. Começou a
ser usado nos anos sessenta e setenta, para se referir a uma sociedade na qual,
além de prevalecerem os critérios dos homens (patriarcado), as pautas são
ditadas exclusivamente por aqueles que consideram apenas a heterossexualidade
como algo “normal”. Podemos afirmar que, hoje, é a manifestação política e
visível do machismo e da rejeição às diferentes identidades e orientações
sexuais.
Androcentrismo:
É a visão de mundo que situa o homem como centro de todas as coisas. O macho
ocupa uma posição central na sociedade, na cultura e na história. O conceito
está muito relacionado com o patriarcado, mas também com a discriminação contra
a mulher. Por exemplo, quando em português utilizamos palavras no masculino
para nos referirmos conjuntamente a homens e mulheres, estamos sujeitos a uma
visão androcêntrica que nos faz interpretar o masculino como universal.
Teto de vidro: conforme
a definição da argentina Mabel Burin no artigo Uma hipótese de gênero:
o teto de vidro na carreira profissional, trata-se da limitação velada à
ascensão profissional das mulheres no interior das organizações. É um obstáculo
invisível na carreira das mulheres, difícil de superar, que as impede de chegar
a cargos de maior responsabilidade e liderança. É invisível porque não existem
leis ou dispositivos sociais estabelecidos e oficiais que imponham uma
limitação explícita ao desenvolvimento profissional das mulheres. O termo surgiu
nos Estados
Unidos na década de 1980 (glass ceiling barriers) e é
o motivo pelo qual na maioria das empresas os cargos de responsabilidade
continuam sendo monopolizados por homens.
Teste de Bechdel: É
um método para avaliar se um roteiro de filme, série, HQ ou outra representação
artística cumpre os padrões mínimos contra a brecha de gênero. Foi cunhado
quando da publicação do álbum em quadrinhos Dykes to Watch Out For (“Sapatas
a observar”) e deve seu nome à sua autora, Alison
Bechdel. A roteirista estabeleceu as bases
para reconhecer o sexismo na cultura(atualmente, seu teste é muito usado
no cinema) na
tira The
Rule (1985), em que uma mulher diz a outra que só vai ver filmes
que cumpram três requisitos: precisam ter no mínimo duas mulheres, as duas
personagens precisam conversar entre elas em algum momento do filme, e quando
isso acontece elas não podem estar falando sobre um homem. Aplicar a regra a
qualquer filme demonstra a proeminência do discurso masculino e revela que
grande parte das personagens femininas só existe como escada do
protagonista homem.
Feminazi:
Popularizada pelo conservador Rush Limbaugh em 1992 para criticar o feminismo
militante, essa palavra é usada em sentido pejorativo para se referir a
feministas tachadas como radicais, sob o argumento de que o feminismo não
procura a igualdade entre homens e mulheres. Em seu livro The Way
Things Ought to Be (“Como as coisas deveriam ser”), Limbaugh compara
as feministas pró-aborto aos nazistas, referindo-se ao
movimento como um “holocausto moderno”. Atualmente, é um insulto frequente na
boca de quem pretende desprestigiar o feminismo, e muitas mulheres que lutam
pelos direitos femininos são chamadas de feminazis.
Femismo:
Esse neologismo é usado em português para definir o “machismo ao contrário”, ou
seja, a noção de que as mulheres são superiores aos homens. Costuma ser
equiparado à misandria (ódio aos homens). Mas a verdade é que não existem
organizações femistas, nem um movimento femista. Portanto, é uma palavra usada
pejorativamente por quem se incomoda com o feminismo.
Sexismo: Discriminação
das pessoas em razão do sexo. Embora o termo seja utilizado para se referir à
discriminação contra ambos os sexos, o fato é que as práticas sexistas afetam
principalmente as mulheres, dada a vigência de crenças culturais que as
consideram naturalmente inferiores ou desiguais aos homens. Por exemplo, quem
acha que as mulheres têm menos
capacidade de tomar decisões ou de ocupar postos de liderança está
sendo sexista. Também é sexista a atitude de impor uma noção de masculinidade
(gênero) aos homens (sexo) e uma noção de feminilidade (gênero) às mulheres
(sexo).
Machismo:
O machismo pressupõe que as mulheres são por natureza seres inferiores aos
homens. Também poderíamos dizer que é um conjunto de crenças, práticas sociais,
condutas e atitudes que promovem a negação da mulher como sujeito em diversos
âmbitos. Os âmbitos nos quais o gênero feminino é marginalizado podem variar
(econômico, familiar, sexual, legislativo…), e, em algumas culturas, dão-se
todas as formas de marginalização ao mesmo tempo. Certas vozes apontam que o
feminismo não é necessário porque já não vivemos numa sociedade machista.
Embora tenham ocorrido grandes avanços em termos de igualdade, vivemos uma
miragem. O machismo é a razão pela qual as mulheres não chegam aos cargos de
responsabilidade ou pela qual não ganham o mesmo que seus colegas. Também é o
motivo que leva as mulheres a serem maltratadas e assassinadas. Porque o
machismo mata.
Misoginia: É
o ódio ou aversão a mulheres e meninas. Embora sua manifestação mais evidente
seja a violência machista (seja física, psicológica ou simbólica), também a
humilhação, a discriminação, a marginalização e a objetificação sexual da
mulher são formas de misoginia.